segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Dois corpos estranhos

“O rompimento os levou de novo a corpos do mesmo sexo, de onde ambos, agora viam, jamais deveriam ter se afastado”.

João Gilberto Noll / Berkeley em Bellagio


para Bianca, com distração


1. Camila


Para Camila o amor fora uma experiência traumática. Ter sido durante um tempo amante do próprio pai suscitou nela um profundo ódio a Freud. Que tinha ele de desvendar os segredos mais recônditos da alma humana? Quem lhe dera esse direito? Se o problema dele era tesão reprimido pela própria genitora, que o resolvesse isoladamente. Mas não, descobriu toda a sacanagem latente e resolveu escancarar, talvez não suportasse o peso sozinho, e agora todos os mortais – inclusive Camila – tinham de se conformar com o fato de saberem a verdade.

- Você leu Freud ao contrário – estirado na poltrona da sala, Marcos, o cigarro queimando entre os dedos, lhe alertava.

Intelectual metido a besta, teve vontade de dizer-lhe, mas a poltrona agora estava vazia, e em instantes seria ocupada pelo bichano que viria da varanda acomodar-se no local que julgava pertencer ao chefe da casa. E Marcos, onde estaria? Algures com um livro nas mãos, sem dúvida. Aquele cara não largava os livros nem pra cagar. Que ironia: um país com mais escritores que gente letrada. Era isso mesmo, não havia o que discutir. País de analfabetos, políticos corruptos, escritores saindo pelo ladrão, e banguelas. Até a televisão, que já fora uma das melhores do mundo, tornara-se medíocre. Às nove da noite, na telenovela, as personagens fodiam sem parar. Se Camila tivesse filhos, os mandaria pra cama antes da novela. Ou ainda melhor, não teria tevê em casa. Mas eram apenas ela e o gato persa; gato de gente fresca, segundo Marcos. Ali pelas seis da tarde a solidão batia, Camila corria a fechar as janelas do apartamento como se temesse evadir-se de si mesma por meio da última brisa da tarde. Em seguida preparava um lanche, colocava um cedê pra tocar, lembrava Marília, que há semanas não aparecia, sequer telefonava. Na secretária eletrônica, ainda o som de sua voz melíflua na última mensagem gravada: Oi, coração, trabalhando muito? Não te acho de jeito nenhum. Por que não apareceu no aniversário da Vivi? Há tempos eu não me divertia tanto! Estou com saudades! Faz tempo que não damos risada. A gente precisa sair. Campos não seria uma má idéia. Beijos. Me liga! - Pela enésima vez ouvia a mesma mensagem, e a cada vez acreditava extrair novos significados; recompunha o sentido das frases alterando a sintaxe, há tempos não me divertia tanto com beijos, acho que a saudade faz aniversário no coração... Escrevia as frases num caderno velho, o mesmo caderno que, em menina, usava para descrever as sensações que a vida diariamente lhe facultava. Com sua caligrafia impúbere registrara a aventura do primeiro beijo, o gosto da boca de outra menina, as palavras com a imprecisão costumeira; se realmente desejasse ser fiel a um acontecimento, tinha de relegá-lo ao sopé do silêncio, deixar que vicejasse por conta própria. Outra lição de Marcos. Palavras nunca se bastam; melhor é o silêncio. Em companhia de alguém, no elevador, Camila sempre largava uma palavra - era insegura demais para repousar no conforto do mutismo. Tinha que se despojar da autocomiseração, depositar no outro todo e qualquer indício de misericórdia. Ao caminhar pelas ruas, sentia-se íntima das pessoas no intuito de prolongar por um instante que fosse o prazer de dividir o mesmo espaço. E isso às vezes fazia dela um ser tardio. A velhice se lhe insinuava até mesmo no verão dos trópicos, quando tudo fedia a sexo.

Em cima da mesinha do computador uma pilha de provas de matemática esperava por ser corrigida. Assim que ganhasse coragem Camila tomaria um banho quente e em seguida daria início à correção dos testes. Agora se encontrava abandonada à mesma cama que tantas vezes sustentara o peso de dois corpos em brasa: ora o seu e o de Marcos, ora o seu e o de Marília. Do guarda-roupa velho vinha um ruído agudo de destruição: os cupins roíam a madeira morta e as traças comiam suas roupas e livros. Mesmo sem ser convidado, o gato intrometeu-se quarto adentro e aninhou-se junto ao torso da dona, com quem decerto imaginava manter um relacionamento amoroso. Para ele, Camila devia ser sua amante. Era ele quem a nutria de amor e compreensão, quem filtrava sua angústia transformando-a em pulsão de vida... O amante felino, tal qual o pai havia sido sem o saber. Pois, na impertinência da infância, Camila exigira da mãe a visão do pai nu. E foi assim que, após o banho, o homem se mostrou à filha da forma mais crua, a forma que, julgava, melhor contribuiria para a educação da menina.

O corpo do pai... tão diverso do corpo de Marcos, e no entanto todos os corpos seriam invariavelmente cotejados com o corpo úmido que o pai lhe exibira após o banho; toda carga de sêmen que lhe inundava o ventre não era outra senão a do pai, pois o corpo do homem era uno. Ela tantas vezes apaixonada pelo mesmo homem que a levava a passear nas tardes de domingo, ou pelo homem que selecionava os livros que deveria ler – e o fruto tantas vezes apodrecendo nas suas mãos. Isso se repetindo desde a puberdade, quando começara a explodir em peitos, coxas, estrias, sangue, desejo... Ou ainda a fome de viver que sentia, essa fome que a fazia triturar a carne do almoço com seus dentes de pantera – o pai a observá-la com o rabo do olho, como que espantado com tudo que acontecia com a menininha que outrora ria ante a primeira visão de um homem nu. E Camila tentando se espelhar na mãe, para descobrir o que afinal significava ser mulher, sendo que apenas anos mais tarde descobriria... Porque ser mulher era insinuar-se para a vida; era um decote, um brinco de pérola miúda; uma recusa oportuna – e não era nada disso.

Quando Camila completou quinze anos, a mãe - sua velha cúmplice - resolveu colocar as cartas para ela. Enquanto embaralhava, a mulher tinha os olhos fixos na filha, que aguardava, afobada, o desenrolar do destino que o baralho lhe revelaria. Uma a uma as cartas iam sendo postas sobre a mesa, até que, com sua unha cintilante e pontiaguda, a mãe apontou a carta que representava o homem da vida de Camila: o Valete de Ouros. O homem que a desejaria com ardor, que a impregnaria com seu cheiro indelével de macho para todo o sempre, que faria do seu próprio corpo um lugar ideal para se morar, e que a deixaria depois de uma discussão estúpida, tomando um táxi de volta para sua solidão.

Espreguiçava-se, tentando se livrar do limbo no qual o tédio lhe arremessara. A noite agora era uma mulher de meia-idade, pronta a devorar os rapazinhos em flor que nela se aventurassem. Camila, incomodada, rolava de um lado a outro na cama, sem coragem de se levantar. Podia ouvir o ronronar do seu gato fresco, o apito da chaleira do vizinho, o cricrilar dos grilos no terreno contíguo ao prédio, as sirenes perdidas no trânsito... e ainda ressoava em sua cabeça uma voz de mulher, há tempos não me divertia tanto com beijos, mas onde Marília agora?, em que festa?, em que porre de entorpecentes e desvarios?, nada, nada, somente o ziiiiiiiii! da porra da chaleira. Paralisada. Os músculos uma só tensão. Como exprimir o seu desejo, se o seu desejo era de morte? Não havia meios de se libertar desse cárcere abstrato. Porque ser mulher... Ela queria, ensaiara os passos necessários, mas quando da dança... Era diferente. Marcos já dizia: Viver tinha que ser de uma vez só. Marcos, o tipo alto, a pele amorenada, os cabelos de um tom levemente grisalhos – um charme, sem dúvida; e mãos, mãos grandes e protetoras; os traços sagazes, lembrando um prestidigitador que acabasse de realizar, com sucesso, seu último número de ilusionismo.

Soou a campainha. Camila, exasperada, colocou o travesseiro sobre a cabeça e apertou com força. As luzes todas apagadas. Somente os olhos coruscantes do gato a irradiar luminosidade. De novo a campainha. Logo vai desistir, pensou ela. Queria ficar assim, sôfrega, doída, porque também podia ser bom, era uma questão de saber gozar o momento. Mas a campainha tocava insistentemente. O gato pulou da cama e caminhou na direção da sala, abanando sincronicamente o rabo felpudo como um pára-brisa. Camila espreguiçou-se uma vez mais, sentou-se à beira da cama, ajeitou os cabelos, calçou os chinelos e saiu do quarto. Conferiu as horas no relógio do aparelho de som: nove e quarenta da noite. Andava devagar para não fazer barulho, logo iriam embora, não queria saber de visitas, não importava quem fosse. Tomaria um banho, se refaria, tinha provas a corrigir, talvez ligasse a televisão, uma espiada na novela, as personagens foderiam, sim, mas que importava? Que fodessem! Mas ela não abriria a porta, não agora. Foi até a cozinha, tomou um copo d’água, deixou cair um pouco de água no colo, água gelada, caminhou até a sala e bateu o joelho na mesinha do telefone, Merda!, ficaria roxo, mas não, não abriria a porta nem atenderia telefonemas. Encostou-se à parede rente à estante, ali os livros, os álbuns de fotografia, fotografias dos parentes, dos amigos, dos homens e mulheres com quem fora pra cama, do Valete de Ouros, o homem da “sua vida"... E a campainha a retinir. Camila grudada à parede, exausta, os pés de mulherzinha colados um ao outro, o coração palpitando; ensaiou uma espiada no olho mágico mas logo voltou atrás, resistiria, o pouco de água que caíra no vão dos seios evaporara e agora a queimava, tinha vontade de despir-se, de dar-se toda a seu amante felino, mas ele partira e não dera mais notícias, um táxi sem volta para sua própria solidão.

- Ainda que seja Deus à porta, eu não abro!


2. Marcos

Trinta e três – a idade de Cristo. E o que Marcos havia conquistado, além do coração doente? Difícil mensurar. Tinha a sensação de que a vida lhe escapava a cada segundo, sem que pudesse reagir. Mas isso era apenas angústia. Um garotinho de cinco anos poderia passar por isso sem sequer perceber. Agora sentia falta das noites insones em que acreditava sofrer demais. Sofria por amor, por ter tido que magoar alguém de quem gostava – a mãe, por exemplo. E sua sensação de culpa só foi mitigada quando teve uma conversa com um professor de literatura no ginásio, que lhe disse que o homem sofre mais por um pé na bunda do que por um câncer no intestino alheio –na medida em que a bunda é sua e o câncer é do Outro. Uma unha encravada nossa dói mais do que o ciático do vizinho, porque se trata da Nossa Unha. Assim sendo, por mais que haja compaixão de nossa parte, o sofrimento sempre será algo puramente individual.

Mesmo ciente disso, Marcos não conseguia ser paciente o bastante com aqueles que, por bem ou por mal, ignoravam sua doença. Não que quisesse ser adulado o tempo todo, procurava um equilíbrio. Esse equilíbrio que um homem busca durante a vida toda e nunca consegue atingir, Marcos queria alcançá-lo no pouco tempo de que dispunha.

Era o sétimo da fila para o transplante de coração. E, ao contrário do que ele próprio esperava, não se havia distanciado do que a vida podia lhe proporcionar de bom. Devia ter aberto mão do sexo, por exemplo, mas o sexo estava implícito em cada um de seus movimentos, desde o momento em que se levantava da cama até o momento em que retornava a ela para dormir. A vida pulsava indiferente a seu coração debilitado, e Marcos sonhava castelos erotizados, bravatas homófobas, fluidos corporais, piadas de duplo sentido. O “Professor Erótico”, este o apelido que ganhara de seus alunos. Sentia falta do ambiente desprendido da universidade, do tempo em que integrava um corpo maior, um todo. Pois agora estava abandonado à própria solidão, preso à doença que eclodira de súbito, entre um abrir e fechar de portas, entre o abrir e fechar de um zíper - num cochilo, numa troca de salivas.

Arfava só de caminhar de um cômodo a outro da casa. O corpo às vezes lhe pregava peças, fazia birra, se negava. O quintal se transformara num imenso descampado, o qual ele preferia evitar. Ansiava por cigarros, mas os cigarros haviam sido banidos da casa pelo pai. Marcos conseguira esconder alguns maços dentro do armário, mas agora não tinha forças para apanhá-los à altura que se encontravam. Atirara no próprio pé. Estava reaprendendo a viver. Escovava os dentes sentado no vazo sanitário para poupar energias. Tomava banho sentado numa cadeira de plástico. Lia pouco – o mesmo fôlego curto que tinha para escrever. Alem do quê, lhe era forçoso virar as páginas do livro. Estava relendo os “Morangos Mofados” de Caio Fernando Abreu e também “Contraponto”, de Aldous Huxley, livro que lera na adolescência e pelo qual se apaixonara. O começo era primoroso: aquela descrição sucinta da vida humana: a gestação, o parto, o crescimento, a prostração e a morte. Depois de se ler um livro como esse, não se conseguia escrever mais um parágrafo sequer. E no entanto ele havia sido teimoso. Desafiara as próprias convicções ao se aventurar pelas narrativas curtas. Nunca tentara o romance. Tinha a sensação de que morreria antes de chegar ao final da estória. Não, um romance não era pra qualquer um - exigia muito do corpo. E agora Marcos sabia que seu corpo sempre fora muito limitado, incapaz de suportar as centenas de páginas de uma narrativa longa.

Esperar pela morte de alguém para que pudesse receber um órgão novo era algo que Marcos preferia evitar. Era, sem dúvida, uma atitude hipócrita. Se sofresse morte cerebral em decorrência de um acidente de trânsito, por exemplo, gostaria que todos os seus órgãos e tecidos fossem reaproveitados. Todavia era difícil imaginar que alguém teria de perder a vida para que ele retomasse a sua. Não era uma questão de merecimento. Saber viver ou não era um ponto que não seria levado em conta. Marcos se apaixonara algumas vezes e nem por isso se julgava realizado. Pelo contrário, poderia ter sido feliz, no melhor sentido que o termo encerra. Ao lado de Camila talvez tivesse atingido um outro patamar da existência. O corpo de uma mulher podia ser um verdadeiro celeiro de maravilhas. Ainda mais um corpo como o de Camila: pele clara e sedosa, cheiro de algodão doce (!), cabelos lisos e compridos, carnes fartas, lábios ávidos de beijos e de palavras – quase uma Lolita decaída. Poderiam ter perpassado todo um dicionário de sensações, e nunca se dariam por satisfeitos. Mas onde se encontrava aquela menina agora? Decerto refugiada em seu casulo de incertezas, na companhia daquele animal estúpido. Marcos detestava gatos, e nunca escondera isso de Camila. Suportava a presença do bichano somente por consideração à namorada. Ou o mais correto seria dizer amante? Não sabia. Acreditava apenas ter vivido algo intenso ao lado daquela mulher. Juntos se achavam sossegados; a vida não precisava mais ser um road-movie. A necessidade de outros corpos havia-se tornado desnecessária. O maior responsável por isso fora Camila, com certeza. Marco só fizera se deixar levar.

Adotara o bissexualismo por falta de opção. Ser gay era um lugar-comum, assim como ser hetero. O mesmo se aplicava a crer em Deus ou não. E ainda assim os clichês o perseguiam. Mas agora tanto fazia. Aos poucos ia se despojando de si mesmo. Aquilo que representara para os outros já não importava mais. Sabia que tinha de viver até o “último suspiro”, pois havia os amigos, e o pai. Eduardo, o amigo mais íntimo, visitava-o freqüentemente. Trazia sempre o tabuleiro de xadrez, embora Marcos insistisse para que não o fizesse. Achava que xadrez era um jogo demasiado longo, e ele se cansava no meio de uma partida. “Estou fodido”, deixava escapar, e essa piada não tinha a mesma graça de antigamente, de quando era jovem – e fazia tão pouco tempo. Lembrava a canção: “Até bem pouco tempo atrás / poderíamos mudar o mundo/ quem roubou nossa coragem?” E na voz de Renato Russo tudo fazia tanto sentido. Poderia também ser uma sinfonia de Beethoven, ou uma música de Milton Nascimento... Mas repudiava as homenagens póstumas, e não queria trilha sonora no seu funeral. Isso lhe parecia coisa de adolescente que vê a si mesmo dentro de um filme com trilha sonora pop. Ridículo. A mocidade – que palavra antiquada! – sempre seria ridícula. Ele se distanciara totalmente dos jovens depois que se afastara da universidade. Havia lecionado em cursinhos também, e até conhecera adolescentes surpreendentemente inteligentes. Claro que conhecera garotinhos que liam “Harry Potter” e achavam que tinham descoberto o néctar dos deuses. Mas eram apenas garotinhos bobos. Ele também o fora em algum lugar da sua memória. Havia ainda outro atenuante em favor da mocidade: muitos de seus pares acadêmicos estavam lendo um tal de Dan Brown. Pior ainda: liam e trocavam comentários entusiasmados. Alguma coisa estava errada, e não eram suas preferências literárias. A humanidade mergulhara numa latrina repleta de utopias superadas. Não era difícil se dar conta disso agora, à idade de Cristo - que, diga-se de passagem, vinha ganhando releituras de deixar os cabeças do vaticano com o cu na mão. Uma ex-colega de faculdade lhe enviara, no último Natal, um exemplar de “O Código da Vinci” juntamente com uma carinhosa dedicatória. Marcos sentiu vontade de lhe escrever dizendo que não tinha tempo a perder com historinhas bobocas envolvendo a Igreja Católica, pesquisadores-detetives, Jesus, e outras tantas figuras quiméricas, mas capitulou assim que se lembrou da maneira afetuosa com que a moça se dirigira a ele: “Meu caro Professor Erótico, vate dos amores inconciliáveis... Pica doce! Lembranças da sua Besta Fera de Ribeirão Preto”. Enfim, ela conseguira amolecer seu coração, e, em vez de lhe escrever uma epístola malcriada, Marcos resolveu mandar-lhe flores e uma caixa de bombons com recheio de avelã. Ah, que seria de nós sem os clichês românticos! ... A Besta Fera -a primeira mulher com quem transara -, a mulher que o comeu sem perguntar se ele queria ou não, e que acabou por fazê-lo gozar dentro dela duas vezes seguidas. As fêmeas o haviam imolado desde a infância. Certa vez Lúcia, a prima cinco anos mais velha que ele, o obrigara a beijar-lhe as partes pudendas durante uma tarde inteira de inverno. O pobre ficou com cãibra nos lábios um bocado de tempo. Sim, elas haviam sido perversas com ele, e nem assim ele conseguia odiá-las. O fato de ter conhecido o corpo de outro homem em tenra idade nada tinha que ver com a histeria sexual das mulheres da família. Ainda garoto presenciara a mãe sentenciar à melhor amiga, numa conversa escusa: o ânus é a grande zona erógena a ser explorada. Sua mãe era uma mulher vivida – sabia das coisas. Enquanto o pai sempre fora um sujeito ensimesmado, cabisbaixo. Talvez por isso os dois tivessem formado um casal quase perfeito. Às vezes Marcos queria ser assim: sem mistério. Afinal a vida nada mais era do que o intervalo entre o sono e a vigília. Era um suspiro prolongado, ou um suspiro curto, tal qual havia sido a vida do sobrinho Daniel, que morrera duas horas depois de nascer. E durante tanto tempo Marcos ficara a conjeturar acerca dos momentos de descontração que ele e o sobrinho poderiam ter vivido, não fosse a criança ter fenecido horas depois de ter vindo ao mundo. E agora Marcos também feneceria. Um coração frágil. “Imprestável para o amor”, diria Paulo Mendes Campos. Era isso: a entrega. Nada mais do “prazer animal de existir”; nada mais de aventuras homoeróticas; nada mais de café nem cigarros; nada mais de porres etílicos e nem tampouco literários; nada mais de amores, nada dessa brincadeira de criança... Os prazeres da vida lhe haviam sido negados. Só lhe restara um corpo estranho a ele próprio. Um coração fraco.


* * *

Ao contrário do autor de “Morangos Mofados”, Marcos não encontrara sua verdadeira vocação quando dos seus últimos dias de vida. Continuava um desajeitado, um admirador do talento alheio. Caio se descobrira jardineiro, mas Marcos ainda mal conseguia cultivar um feijãozinho num copinho com algodão, como sempre é requerido às crianças da pré-escola. Em casa, o pai mantinha uma roseira e algumas samambaias. Marcos achava bonito, também queria arranjar uma distração dessa natureza. Gostaria de ser simples ao menos no fim da vida. Gostaria de viver como uma formiga operária. A colônia seria um aconchego, um útero para se morrer com tranqüilidade. Isso mesmo: gostaria de voltar ao útero materno, de onde às vezes desejava jamais ter saído.


3. Marcos e Camila

Vestindo jeans e camiseta surrada, e calçando sandálias de couro, o homem adentrou o elevador. Sub-repticiamente, ajeitou-se entre a moça com cheiro de algodão doce e um senhor franzino que usava chapéu de palha. Seus pés estavam úmidos devido aos respingos da chuva que havia pouco se precipitara sobre a cidade. A moça também tinha os cabelos molhados, blusinha amarela decotada, um jeito de quem está prestes a dizer alguma coisa. Tanto ela quanto o velho reagiram cortesmente ao sorriso do homem, que agora tentava se recordar do que havia esquecido de importante em casa. Quinto andar, o seu destino. O senhor de chapéu ficou no terceiro, deixando o casal com um ar abobalhado, dentro daquela caixa inóspita. E o quinto andar parecia ter desaparecido. Aonde iria a moça? Ambos estavam algo molhados, ambos mudos, cúmplices. Enquanto ele conferia os livros que trazia numa sacola de pano, ela espiou-lhe os cabelos levemente grisalhos – um charme, sem dúvida. O quinto andar despontara finalmente, e ela, num gesto incontido, deixou cair o prendedor de cabelo que trazia oculto numa das mãos. Então finalmente cruzaram os olhares, e ele se abaixou para apanhar o objeto colorido.

- Um gatinho!? Que simpático – disse ele, devolvendo o adorno à moça ruborizada.
- Eu ganhei de uma amiga. Você gosta de gatos?
- Adoro. Você estuda aqui?
- Isso. Faço pós-graduação. Sou professora de matemática
- Que ótimo! Então somos colegas. Eu leciono literatura.

Os dois trocaram várias impressões. Discutiram gostos comuns, idéias, desacertos. Abandonaram o elevador e foram caminhar pelo campus da universidade. Abriram mão de seus respectivos compromissos para se conhecerem melhor. As nuvens gordas de chuva haviam dado lugar a um céu vibrante, alaranjado. E, depois de mais de quarenta minutos de conversa, resolveram dar cabo de uma praxe que a magia do momento colocara de lado.

- Desculpe, mas eu não perguntei o seu nome.
- Meu nome é Eduardo. E o seu?
- O meu é Marília!

E então souberam que seriam felizes juntos, assim, para sempre.


Guaratinguetá, 16 a 27 de setembro de 2006.