sábado, 24 de outubro de 2009

Diário de um chimpanzé

(I)

Mal a arquitetura do dia se forma, ele pensa em ir embora. Há pouco os cães ladravam e os pássaros chilreavam por atenção, sem sucesso. O mundo não está para eles nem para nós. E ele sentia um certo ódio à insistência do dia em nascer: queria amordaçar os cães e os pássaros que clamavam por atenção. Todos eles. Queria deter o sol, toldar a abóbada celeste. Mas o mesmo espetáculo que o atormentava o convidava a um passeio pelo que a vida pode oferecer de melhor àqueles a quem é dado vestir-se com o manto da existência. Os olhos queimando de curiosidade e rancor, o corpo mantido em stand-by no espaço acolchoado entre o sono e a vigília. Fechou o livro, levantou do sofá, se espreguiçou e caminhou na direção do quarto.

Ao abrir a porta, sentiu um forte cheiro de mofo e desodorante for man. O irmão dormia na parte de cima do beliche, e a avó - com quem há anos eles dividiam o mesmo cômodo - dormia em posição fetal numa cama estreita pegada à janela. Ele caminha lentamente na penumbra a fim de não acordar ninguém; curva o corpo para deitar-se, estica-se bem, sente aos poucos o colchão moldar-se ao desenho do corpo, e procura em vão aquela sensação de relaxamento que sempre vem na esteira do sono.

Não encontrando posição confortável na cama, o corpo produz constantes sensações de contrariedade. Ele e o corpo (porque nunca pensou seu próprio corpo como um aliado) falham na tentativa de penetrar a esfera aconchegante e segura em que a avó e o irmão parecem repousar suavemente. Então decidem, após firmarem um acordo provisório de não-agressão, partir para uma outra empreitada, bem mesmo reconfortante que o sono porém muito mais auspiciosa. Salta da cama e corre a juntar-se aos cães e aos pássaros no coro algo desesperado por atenção - e redenção.


(II)

As abluções matinais contra as secreções produzidas pelo corpo à sua completa revelia. Depois três bolachas de água-e-sal e uma xícara de café como desjejum. Veste sua melhor camisa - herdada do avô materno -, sua calça jeans menos desbotada, seus sapatos pretos mal engraxados, e sai para a entrevista de emprego. Mais uma. Pega o ônibus semilotado; a cobradora negra de cinqüenta e poucos anos o cumprimenta com um sorriso complacente, que se analisado com frieza e distanciamento, revela-se simplesmente automático - o que é bom. Senta-se num banco ao fundo; divide-o com uma moça de uniforme verde-água, de uma rede de farmácias local. Ela tem os cabelos escovados, sua pele recende a sabonete de erva-doce. Ele tenta ensaiar mentalmente o que dirá ao recrutador, como causar boa impressão. Por que merece o emprego? O que o torna digno de confiança? Pensa nas contas que se acumulam sobre a escrivaninha. Pensa na barba hirsuta e grisalha que cresce no rosto do pai; no seu discurso inflamado contra tudo e todos, cujo contraponto principal era encontrado na inocência destemida do irmão caçula. Até quando ele não sabe. Caminha no centro da cidade como um fugitivo da polícia. Vive como um fugitivo. E é absurda mas inevitável a comparação com um criminoso refugiado sob a chancela do governo. Chega ao local da entrevista, uma grande loja de departamentos, confiante, esperançoso, ridículo. A avó vive dizendo que para quem está se afogando jacaré é tronco. O irmão do meio acha graça. Ele também tenta rir de tudo. Mesmo constrangido, ri de suas tentativas de fugir às perguntas de conhecidos sobre sua vida profissional. Da sua idéia boba e estapafúrdia de manter um blog na internet. Dos livros que tem vendido – a contragosto, na maioria das vezes – pela internet. De sua deplorável dependência da internet; da própria citação indiscriminada da palavra internet. Mas então pensa numa verdade alentadora: ele não precisa da internet; mas precisa dos livros. Precisa ler – porque é um animal que lê, acima de tudo. E pouco pode fazer para mudar isso, como em relação às secreções e excreções produzidas diuturnamente pelo corpo. Chega à recepção e diz a que veio para a moça que lixa as unhas pontudas. Ela o anuncia para o recrutador, que pede para que ele aguarde um instante, que em breve será atendido. Enquanto isso, um gato ronrona dentro do seu estômago, e um chimpanzé doido dá corda no seu coração, que passa a bater de modo desenfreado.


(III)

Bem ou mal, ele está no jogo. I’m in, reporta o agente secreto ao chefe da missão. O chimpanzé doido continua a dar corda no músculo cardíaco precocemente debilitado. Periga rebentarem-se as frágeis estruturas do órgão. Ele se levanta do banco onde tentara relaxar debalde. A recepcionista morena (sim, ela é morena e bonitinha) segue lixando as unhas pontudas e pintadas de roxo. Com licença. Não; ele não diz isso porque não estamos num filme americano dublado. Diz: obrigado. E se encaminha à sala estanque do dono dos porcos (a expressão é do pai). À esquerda do corredor que desemboca no escritório do chefe, um grupo de funcionárias do setor administrativo grasna sem parar. Quase não é possível ouvir o que dizem aos berros porque, além das vozes agudas se anularem umas às outras, o tapume que separa o departamento do corredor produz um certo isolamento acústico. Ele sente uma vontade quase irrefreável de permanecer parado no meio do corredor, tentando captar e entender o que aquelas mulheres conversam. Mas faz um esforço para não dispersar sua atenção, que deve estar totalmente voltada para a entrevista que terá lugar dentro de instantes. Respira fundo, ajeita a camisa dentro da calça, tateia os cabelos ralos. Bate três vezes na porta. Entre, por favor, responde a voz do outro lado. E agora sim ele diz com licença, como num filme americano dublado. Postado atrás de uma mesa simples de madeira escura, o entrevistador, um senhor na casa dos 70, de aparência saudável, bem vestido, e com duas discretas bolsas de gordura sob os olhos castanhos denotando abatimento, aponta a cadeira para que o candidato se acomode. Apertam-se as mãos. Uma vez sentados, encaram-se taciturnos e assim permanecem por alguns segundos, como num jogo infantil em que dois adversários medem forças para ver quem consegue sustentar o olhar por mais tempo. A mesa está abarrotada de blocos de notas, faturas, calendários, porta-retratos, porta-lápis, celulares e calculadoras. Um relógio retangular com o logotipo da loja e um pôster do Palmeiras guarnecem a parede atrás da mesa. À direita, há uma estante repleta de arquivos, e à esquerda um frigobar e um sofá bege de dois lugares, rente à varanda cuja vista não chega a ser exatamente enaltecedora.

- Gostei muito do seu currículo. Não entendo por que você não conseguiu uma colocação até hoje. Você está com quantos anos mesmo? – e põe-se a examinar a folha bem diante dos olhos.- Vinte e quantro!?

- Isso.

- E sua única experiência foi como estagiário!?

Ele responde que sim e passa a fornecer detalhes sobre o estágio. Apesar do indisfarçável ar de enfado, o dono dos porcos quer saber mais a seu respeito. Pergunta se mora com os pais, no que eles trabalham, quantos irmãos tem.

- Em que setor você gostaria de trabalhar?

Perguntinha cavilosa. À qual ele responde não sem titubear.

- No setor que for mais conveniente... E sabendo que precisa ser mais específico: Com sinceridade, eu não me vejo trabalhando na linha de frente; os bastidores me caem melhor. Mas não fujo aos desafios. Estou pronto a assumir com responsabilidade e dedicação a função que o senhor me confiar.

Não deu pra aferir o efeito que sua retórica abobalhada causou no entrevistador, pois a campainha do telefone soou em seguida. Ele aproveitou os dois ou três minutos que o homem ficou ao telefone para pensar no que poderia dizer para salvar a entrevista. Não lhe ocorreu nada. Dissera o que achara fundamental: tinha conhecimento disso e daquilo, disposição para contribuir e aprender; o pai estava desempregado, as contas se acumulavam, o irmão pequeno...

- Muito bem. Como eu já disse, gostei do seu currículo. Agora, no começo do ano, há sempre remanejamentos, reestruturações etc. etc. Eu vou conversar com a chefe do RH para ver se consigo encaixá-lo à equipe, provavelmente no setor administrativo. O.k.?

- O.k.

Levantam-se e trocam outro aperto de mão.

- Em breve entraremos em contato para darmos um parecer definitivo. Foi um prazer conhecê-lo, garoto – diz o dono dos porcos.

- O prazer foi meu. Obrigado pela sua atenção. Tenha um bom dia.

Ele deixa a sala amargando a derrota que lhe pareceu tão palpável quanto qualquer um dos inúmeros objetos que atulhavam a mesa de madeira escura do entrevistador. A equipe de mulheres do setor administrativo continuava a grasnar. Ao passar pela recepção, agradeceu novamente a mocinha das unhas roxas e ato contínuo ganhou a rua.


(IV)

As inflexões de tristeza nos rostos dos velhos que disfarçam sua solidão nos bancos da praça parecem prenunciar a hecatombe. E os pombos, esses roedores alados, são os arautos do Apocalipse. O calor abafado desse dia de céu cinzento dá a exata medida do desespero latente sob as almas dos que têm pilhas de contas a pagar e diversos problemas amorosos /sexuais a resolver. Cada criança que passa por ele de mão dada com a mãe revitaliza num átimo sua esperança de um futuro melhor (?). Mas as mulheres palradoras e excessivamente atraentes que se insinuam para a vida com o mesmo despudor com que subjugam os amantes quando do amor provocam em seu âmago um frisson adolescente que o devolve imediatamente à condição de misantropo. Apaga-se a sensação de que ele é, de uma certa maneira, mais consciente do que se passa no mundo do que o ordinário. Ao passar diante duma loja de eletroeletrônicos, vê sua imagem refletida num aparelho de tevê retangular de cinqüenta e quatro polegadas e apressa-se em desfazer esse sentimento de horror. Em redor do chafariz onde brincam crianças serelepes sob o olhar vigilante das mães, percebe uma concentração de quatro ou cinco pesquisadores uniformizados de uma escola de informática. Tenta escapar mas é tarde: uma garota morena e baixota o interpela e pergunta se gostaria de fazer um cadastro para concorrer a uma bolsa de estudos de cinqüenta por cento. Normalmente teria respondido não, mas aquele não era um dia comum. Sorriu debilmente e informou seu nome e telefone à garota. Ela não pôde conter sua felicidade. Em média quantas pessoas conseguia conquistar por dia?

- Idade?

- Oitenta e dois.

- Estado civil?

- Escravizado por uma sílfide castradora.

- Filhos?

- Três ogros, dois zumbis e uma sereia.

- Profissão?

- Prestidigitador.

Por fim, ganha um cupom para depositar numa urna de prata fincada no topo da colina mais alta e distante. Há uma urna de prata hermeticamente fechada na ante-sala do seu peito. Pergunta se ela não quer depositar um cupom nela, mas a garota declina. Covarde! Babaca! Decepcionado, ele lhe dá as costas e segue para a disneylândia mais próxima. Encontra o gado de sempre pastando por entre as estantes das Lojas Americanas. O ar condicionado refresca seus espíritos. Perde seu tempo procurando uma filme genial e barato na seção de DVDs. Uma vendedora pára a seu lado e pergunta as horas: quinze para as onze, responde. Que saco! A hora não está passando hoje. Ele entende sua indignação. Quem é que está refreando os ponteiros do relógio? Quem se mete a deter o tempo universal? Então lhe vêm à cabeça imagens de um documentário sobre o Universo a que assistira na madrugada passada na companhia do irmão do meio. O Big Bang e a formação das galáxias... O surgimento da vida na Terra ao acaso. As forças e os elementos da natureza descobertos por gênios como Einstein (ele se lembra só de Einstein, mas, justiça seja feita, há outros cientistas tão importantes quanto ele que contribuíram para a aquisição do conhecimento que hoje dispomos sobre o nosso planeta e o Universo). Os buracos negros. E sobretudo o desconhecido: a tal matéria escura presente na quase totalidade do Universo e sobre a qual os cientistas não sabem praticamente nada. Nada. Esse tipo de documentário sempre o deprimiu porque dá a medida justa da sua insignificância. Nem o fato de saber que seu corpo é feito da mesma matéria que compõe as estrelas o conforta. Programas jornalísticos sobre o Aquecimento Global e assuntos correlatos também o deprimem. Como é frágil e patético! Outra vendedora magra e de olhos verdes (que olhos!) o aborda e o informa da promoção da semana: alugue três DVDs (na Blockbuster que funciona dentro da loja) e ganhe duas pipocas de microondas. Mas eu não tenho microondas, meu amor (não disse meu amor, claro). Em todo caso só tinha dinheiro para a passagem de ônibus. Saiu da loja e caminhou a esmo, até ir parar na Biblioteca Municipal, onde poderia ler e disfarçar sua solidão gratuitamente.


(V)

Andando pelo calçadão do Mercado Municipal, ele chuta o restolho de hortaliças e desvia dos cães vadios e dos pedintes que atravancam o caminho. Sente uma leve dor no flanco esquerdo, um aviso de que em breve uma hérnia eclodirá bem ali, à altura do rim, como a do pai eclodiu. O joelho esquerdo também está dolorido, mas ele sabe que isso nada tem que ver com previsões meteorológicas de qualquer espécie. Costume de velhos. Caminha até a banca de jornal e espia as manchetes. Desemprego. Futebol. Crise econômica. Carnaval. Violência. Corrupção. Mais carnaval e futebol. Pousa inopinadamente o olhar sobre a fileira de revistas pornográficas: a moda agora são as mulheres-fruta. Mulher com mulher já virou clichê, mas homem com homem - pelo menos em banca de jornal – é um fenômeno recente. E ninguém parece se importar. Acha bom que seja assim. Todo cidadão tem direito a escolher a sacanagem que melhor lhe aprouver. Um carro-de-som passa gritando ofertas de cama, mesa e banho no seu ouvido. Outro carro anuncia a chegada de um circo de nome esquisito na cidade. Ele ainda vai descobrir o que tanto esses circos de nome estrangeiro vêm fazer na sua cidade, um desconhecido fim de mundo. Ganhar dinheiro? Mas como, se mais ninguém parece se interessar por espetáculos circenses hoje dia?Carrega um buraco negro no peito. Está muito suscetível a enfermidades. Resolve entrar no Mercadão. Vai até uma peixaria e pergunta o preço do quilo de cação. Gosta de sentir o cheiro das mercadorias. Gosta de ver essa gente que se dedica a um ofício tão antigo e essencial. Quando está imerso em uma crise existencial profunda, dirigi-se ao Mercado Municipal em busca de conforto. Ali sente-se humano, substantivo, telúrico. Chega-se até a barraquinha onde um octogenário de cabelos acinzentados e unhas grossas e sujas vende livros, revistas e jornais velhos. Uma vez comprou ali um livro por cinco reais e o vendeu por oitenta, na internet. Desnecessário dizer que se arrependeu.

Sai do mercado quando sente um inexpugnável desejo de deitar-se naquele chão centenário e chorar que nem criança.

Um funcionário lava o saguão da biblioteca. Ambos trocam um olhar impessoal, quase hostil. Já “brigaram” pela posse do jornal várias vezes. Quando um dia o tênue fio da civilização se romper, sairão no braço. O tênue fio da civilização! Ensaio sobre a cegueira, filme de Fernando Meireles baseado no romance homônimo de José Saramago, versa basicamente sobre isso. Uma epidemia de cegueira assola a humanidade, que pouco a pouco transgride as leis de convivência mais básicas. A barbárie recrudesce. E só não triunfa completamente porque Juliane Moore guia-nos até a luz.

Tivera rusgas com outros leitores por causa de jornal e espaço para ler. Apesar de sempre procurar ser educado e justo, conseguiu ganhar a antipatia de alguns “velhos loucos.” Havia um que portava um cajado e um saco de estopa, e sempre chegava ao local fazendo estardalhaço. Seus olhos eram azuis e aguados, e apenas dois dentes amarelados figuravam solitários em sua boca murcha. Sentava-se a uma mesa de modo a atrair a atenção toda para si, e sacava do saco de estopa uma lupa com a qual lia o noticiário político dos dois jornais assinados pela biblioteca. Era um entusiasta de Barack Obama. De cada dez palavras que dizia, podia-se compreender uma.

(VI)

Nos últimos dias ele tem alternado sentimentos de resignação e esperança. Quase nunca é agredido pela falta de sentido que sempre o acompanhou. Ainda não é a sensação de conforto absoluto que um dia pretende trazer consigo, a sensação de que viver é natural, e que portanto deve encarar seu destino humano como um chimpanzé ou um lagarto encaram o seu. Depois que experimentou o pânico, nunca mais conseguiu viver com total naturalidade; o tempo todo tem de se esforçar para convencer a si próprio de que estar vivo é natural e devemos tocar nossas vidas de acordo com o que nos constitui.

Tem saído para procurar emprego como de hábito. Na maioria das vezes fica sabendo de oportunidades por meio de amigos e conhecidos. Às vezes consegue uma ou outra entrevista; às vezes essas entrevistas se desdobram em segundas entrevistas ou em testes diversos, os quais ele encara estoicamente, sempre cuidando para transmitir uma impressão melhor do que sua aparência e seu semblante melancólico acusam. Quer impressionar sem cair no ridículo, mas quase nunca consegue. Diz pequenas mentiras e acredita que nunca vai ser desmascarado em razão da inocuidade desse ato. Mais do que mentiras, ele comete omissões. É um sonegador. Se fosse bom nisso, até que sentiria algum orgulho, mas passa muito longe da competência nesse quesito.

Gosta de acordar cedo – talvez pela ausência de obrigatoriedade. Se tivesse de se levantar cedo todos os dias, talvez passasse a não gostar. Gosta de tomar café na rua, e o faria sempre se dispusesse de recursos para tanto. Quando não sai à procura de emprego, vai à biblioteca municipal da cidade vizinha, Lorena. Descobriu o lugar por acaso, numa incursão à cidade, durante a qual deixou alguns currículos na agência de empregos do estado local e, na viagem de ônibus, conheceu uma delegada de polícia de meia-idade que lhe desejou boa-sorte. A biblioteca municipal de Lorena possui um acervo variado que lhe apetece. Além do mais, dispõe de assinaturas de jornais e revistas que ele gosta de ler com alguma periodicidade. Os funcionários o tratam com bonomia; permitem que ele empreste três livros por vez, e nunca o punem – sequer o repreendem – quando devolve os livros fora do prazo. A única ressalva que faz à biblioteca diz respeito à limpeza do local. Os banheiros são imundos. Não dispõem de papel higiênico nem de sabão para a higiene das mãos. A bem da verdade, a culpa pela imundície dos banheiros é dos usuários da biblioteca, que decerto reproduzem no ambiente coletivo o que fazem em casa. Caso essa suposição esteja correta, os azulejos do banheiro dessa gente devem estar sarapintados de bosta humana.

Cães vadios circulam livremente pelo prédio. Duas devotas de são Francisco de Assis - a mulher de cabelos tingidos de ruivo que trabalha no guarda-volumes, e a magrinha de olhos fundos que cuida do acervo restrito ao público – dão liberdade para que os cachorros se sintam à vontade no local, podendo se abrigar debaixo de qualquer mesa ou cadeira sem ser incomodados por ninguém, como se fossem vacas ou macacos sagrados indianos. E ele teme pelo dia em que atolará o pé num amontoado de merda canina ao adentrar o prédio, ao caminhar por entre as estantes de livros disponíveis para empréstimo, ou ao se dirigir ao cantinho debaixo da rampa de acesso à sala de informática para cadeirantes, onde jaz o bebedouro enferrujado.

Desfila suas dúvidas e sua insegurança pelos corredores das estantes. Abre livros empoeirados, lê alguns parágrafos, sente a aspereza do papel velho ao folhear. Agacha-se a fim de apanhar um volume na prateleira mais baixa. Permanece alguns minutos assim, de cócoras, namorando o romance, o volume de memórias, de conto, de poesia... Enrubesce quando se descobre observado: ainda é imaturo demais para ignorar o julgamento alheio. Quando se põe de pé novamente, sente uma dor aguda no joelho esquerdo, doente desde a manhã em que caiu no meio de uma partida de futebol na quadra da escola e nunca mais se levantou. Continua lá, estirado na intermediária, sob os olhares preocupados e zombeteiros dos colegas; sob o sol forte de uma bela manhã de verão.

sábado, 14 de março de 2009

Chimpanzés também choram

(Um brevíssimo ensaio sobre o ato de chorar).

Não sou do tipo que chora diante da beleza; tampouco costumo chorar em momentos tristes. Quando, porém, sou tomado por um forte sentimento de desesperança, as lágrimas vêm-me de maneira convulsa, violenta. O pranto me atira numa tormenta de onde custo a sair, e tenho de lutar para não ser acometido do mais ignóbil dos sentimentos: a autocomiseração. Se o sujeito sente pena de si mesmo, perde imediatamente sua identidade. Tudo o que nele havia de digno e admirável dilui-se no caldo ácido dessa sensação perniciosa. Ele sabe que se insistir nisso não conseguirá levantar da cama na manhã seguinte e encarar quem quer que seja. Terá deixado de ser um homem. O humano nele se perdeu.

Também não sei como reagir adequadamente diante de alguém que chora. Não tenho o hábito de chorar na presença de outras pessoas e, quando o faço, prefiro não ser amparado. Palavras ou gestos de alento estimulam ainda mais minhas glândulas lacrimais, e o desastre então é maior. Mas eu imagino que nem todo mundo seja assim.

Lembro-me de ter enfrentado maus momentos com amigos que desataram a chorar diante de mim. Em casos assim, gastamos todo nosso arsenal de frases de efeito. Em princípio tentamos fugir delas, mas acabamos transigindo quando o companheiro, desesperado, diz que sua vida não tem mais sentido e aventa a possibilidade do suicídio.

Minha mãe chorou durante ininterruptos dez dias quando meu avô paterno morreu. Ambos eram muito ligados – e meu avô morreu relativamente jovem e numa cidade distante. Quando seu pai morreu, ela não se abateu tanto, como se acreditasse que a morte o tinha levado em justa hora, além de tê-lo livrado de um sofrimento cruel.

Amigos meus choraram por amor. Porque tinham levado um pé na bunda, ou porque haviam sido traídos. Como é triste (e patético) o choro de um homem traído! Só não é mais deprimente e ridículo que o pranto de alguém que deixou o amor escapar, não se declarou. Aliás, não há choro mais daninho e excruciante que o do arrependido. Nem mesmo o choro da vergonha faz frente ao do remorso.

O maior equívoco que as pessoas em geral cometem no que concerne ao ato de chorar é acreditar que esta é a única maneira legítima de se expressar sofrimento. Esse é, a meu ver, um erro primário. O choro é apenas uma forma de exteriorizar o sofrimento, e não a única. Muitas pessoas são tachadas de insensíveis ou frias porque não se põe a chorar em face de uma situação triste, e isso muitas vezes acaba contribuindo para que elas próprias acreditem na sua falta de sensibilidade.

Por outro lado, nossa sociedade costuma encarar o choro como sinal de fraqueza, em determinados momentos. Nesse sentido, o tratamento dado às crianças é exemplar, principalmente em se tratando de meninos. A estes o direito de chorar só é dado em situações extraordinárias. Se, durante uma brincadeira, um garoto se machuca e seu rosto se contrai numa expressão de dor, os pais tratam logo de proferir a velha máxima: homem não chora. Ou, o que soa ainda mais desumano: engole o choro – sendo esta última frase usada para recriminar as crianças birrentas.

Reza a lenda que, no final da vida, quando a sífilis já havia comprometido bastante sua saúde, Nietzsche chorou ao ver um cavalo ser chicoteado por seu dono numa rua de Turim. Compadecido do sofrimento do animal, o filósofo avizinhou-se dele e abraçou-se a seu pescoço, chorando copiosamente.

Por meio desse gesto, o grande pensador alemão expressou sua consideração às únicas criaturas realmente inocentes sobre a Terra. Isso, contudo, não faz de Nietzsche um homem bom – como de resto nenhum homem é bom só porque chora diante da dor ou da beleza.

Até os animais choram. No filme Camelos Também Choram (2003), uma equipe de documentaristas acompanha o esforço de um grupo de aldeões da Mongólia para fazer com que uma mãe camelo aceite seu filhote e o amamente. A rejeição da mãe tem a ver com o fato de o filhote ser branco e não marrom como ela. Preocupados com a sobrevivência do animal, seus donos decidem recorrer a um ritual mítico que envolve um solo de violino e o canto de uma mulher. Duas crianças são enviadas à cidade mais próxima para recrutar um violinista. Cumprida essa tarefa, os aldeões procedem ao ritual, e pouco a pouco vemos a mãe camelo se deixar enternecer pelo pungente concerto. Após alguns minutos de exposição à música, lágrimas começam a brotar dos seus olhos grandes e melancólicos. E tudo culmina no tão almejado reencontro entre mãe e filhote.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Incursão Diurna ao Centro da Cidade Monstro

“Nós buscamos outras realidades porque não sabemos como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos pelo desejo de saber como é o nosso interior.”

Montaigne

"A tragédia é o estado natural do homem."

Lúcio Cardoso
Blade Runner sabe que precisa chegar ao topo da torre antes do início da tempestade – que, de acordo com o boletim meteorológico que consultara pela manhã, seria uma das mais mortíferas em décadas. Sua missão naquela tarde: exterminar o Grande Recrutador. Antes de deixar seu Q.G. particular, pouco depois da primeira revoada de vampiros do dia, Blade passou em revista seu arsenal de armamentos extremamente letal: o legado do pai finalmente começava a se mostrar de grande valia. O traje era o mesmo de sempre. Calça preta de sarja, camiseta branca e jaqueta cinza escuro.Vestiu um colete repleto de escaninhos em que esconder os armamentos por baixo da jaqueta. Óculos também escuros; gel no cabelo. Indispensável mascar um chiclete de hortelã sem açúcar até sobrevir uma leve sensação de desconforto estomacal. Apesar dos óculos, os olhos ardiam da fumaça oriunda do pólo industria e da noite mal dormida. Ao passar pela ponte pênsil deparou com dois homens barbudos e maltrapilhos que pescavam pacientemente; um deles vez em quando puxava papo com uma sereia popozuda que marcava bobeira na margem do rio. De repente todos se voltaram para a pista a fim de ver a passagem do comboio de zumbis escoltado por cerca de vinte policiais armados de escopetas. Andou cerca de quatrocentos metros até chegar ao hospital geral, em frente ao qual estendia-se uma fila com cerca de duzentas mulheres azuis de sangue prata que aguardavam sua vez de tomar a pílula do dia seguinte. Blade flertou com uma delas enquanto se dirigia ao terminal de caixas eletrônicos. As mulheres azuis tinham fama de ser grandes amantes, o que até então Blade não havia podido comprovar. Sua única parceira sexual era Elaine, que desde que abandonara o negócio de crepes suíços não voltara a dar notícias. Os dois haviam se conhecido num rodízio onde eram servidos variados tipos de carne de seres mitológicos: de faunos a dragões. A picanha de duende era uma verdadeira iguaria; o mesmo podia ser dito acerca das costeletas de saci. Além de crepes, Elaine fazia poesia. Blade era seu único leitor. Ao sacar trinta e seis reais no caixa, lembrou-se de uns versos da amada: À noite a noite abarca / meus pensamentos / E os remete ao limiar da loucura / Há um estremecimento / em face da triste urdidura. Estava triste porque achava que Elaine havia retornado à cidade natal, o que significava que dificilmente voltariam a se ver. Vai demorar?! – exclamou ruidosamente um ciclope espadaúdo que esperava a vez de usar o caixa. Já terminei, disse Blade, após ter sido violentamente sacado do seu mundo de abstrações. E saiu do terminal em disparada, rumo ao topo da torre, onde o Grande Recrutador regia férrea e sadicamente o teatro de bonecos que se dava cá embaixo, em terra firme. Quem passasse pelo corredor de mendigos corria o sério risco de ter um naco de sua carne arrancado às dentadas. Logo à entrada do mercado municipal, cuja fachada servia de abrigo para as lactantes andaluzas que amamentavam seus filhotes, anjos e demônios, protegidos por seus respectivos mascotes - lobos, tigres, falcões, rinocerontes. Blade sentiu pena dos lobisomens magros que bebiam a água turva que escorria nas sarjetas. As mulheres barbadas exibiam seus corpos roliços em vitrines esverdeadas. Cerca de quinhentos metros de um calçadão onde se comerciavam todo tipo de mercadoria imaginável. Granadas, especiarias, tubarões-baleia. Blade almoçou mariscos e bebeu meio litro de refresco de tamarindo. Restaram-lhe vinte e três reais. Quando passava distraidamente por uma galeria, foi puxado pela gola da jaqueta para dentro duma câmara escura. Os primeiros relâmpagos iluminaram o ambiente, e ele pôde ver os homens e mulheres perfilados em poltronas vermelhas e aveludadas, prestando atenção ao filme exibido na tela grande. Um rosário audiovisual de miséria, dúvidas e conquistas. E Blade podia jurar que, entre as mulheres encapuzadas que praguejavam contra a tribo inimiga em meio às ruínas e aos cadáveres de seus filhos e maridos, estava Elaine. Todos na sala riam, choravam, soluçavam, grunhiam. E ele se lembrou de um filme em que um delinqüente juvenil era obrigado a assistir a sucessivas imagens de violência. Mas, ao contrário do rapaz do filme, ele podia fechar os olhos, sair imediatamente do local e se concentrar de novo no que era realmente importante: o encontro mortal com o Grande Recrutador. Não foi difícil atravessar a praça central apinhada de bombos, consumidores, pesquisadores, ambulantes. O imbróglio de nuvens lilases já expelia jorros intermitentes de água púrpura, além das descargas elétricas que fritavam indistintamente camundongos e chimpanzés. O que restara do dinheiro foi gasto com o suborno ao leão-de-chácara que vigiava a torre. Surpreendentemente fácil chegar à sala em que o Grande Recrutador jazia, expectante, debruçado sobre sua enorme mesa de tampo de mármore. E o Grande Recrutador, sangüíneo, corpulento, eminente dono do mundo, levantou a cabeça pesada e olhou na direção de Blade Runner:

- Eu ansiava pela sua chegada.

Blade enfiou a mão direita por baixo da jaqueta e percorreu os escaninhos do colete à procura da arma perfeita.

- Venha. Não oferecerei resistência. Cumprirei minha sina à risca, disse o Grande Recrutador, após abrir a camisa cinza de linho e expor o peito nu ao sacrifício.

Tendo encontrado a faca ordinária de cozinha com a qual pretendia abater o Grande Recrutador, Blade caminhou na direção do alvo, e, desviando por um instante o olhar do rosto afogueado de sua vítima, viu as almas que despencavam do céu junto com a chuva púrpura que se adensava.

- Ande, carniceiro! Sua sede de vingança é mais um sintoma da sua mediocridade moral. Ela crava seu nome no rol dos que nasceram apenas para engordar as estatísticas oficiais – e abriu um sorriso obsceno e revelador.

Como quem descasca uma laranja pela primeira vez, Blade deu cabo do Grande Recrutador. Em seguida abandonou a faquinha sobre a mesa, deu as costas para o corpo largado na cadeira giratória, e seguiu em direção da escada. Quando colocou o pé direito no primeiro degrau, deu-se o que ocorreria, por exemplo, se alguém tivesse, displicentemente, retirado o fio do universo da tomada.
Janeiro de 2009

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Aviso de Chegada

A verdade é que Antônio tinha mãos bonitas. Talvez por isso Andréia tenha me trocado por ele. Não que minhas mãos sejam feias, não se trata disso. Mas as de Antônio eram realmente airosas, e ainda por cima lhe permitiam matar um homem adulto apenas com a sua envergadura, se ele assim o desejasse. Enquanto que as minhas remetem a uma escultura de cera, dada sua coloração alabastrina. E são finas e macias como convém a um gerente de banco sedentário.

- Quer dizer então que ela o trocou por Antônio só porque as mãos dele eram mais fortes e vistosas que as suas? – perguntou Zé Colméia, que acabara de tirar os sapatos e pousar os pés sobre a mesinha de centro, ao lado do pote de bombons.

- É quase isso. Mas há mais coisas envolvidas. Andréia não era tão fútil a ponto de me trocar por outro cara só porque as mãos dele lhe davam tesão. Eu poderia ter suprido essa tara de uma outra forma, e o rompimento não teria sido necessário. O resto eu te conto mais tarde. Já passa das onze e eu preciso dormir, que amanhã acordo cedo. Tenho que descansar porque amanhã é dia em que os aposentados vão ao banco receber. É um corre-corre tão grande que eu sempre volto pra casa com um dor de cabeça terrível.

- Sendo assim, amanhã eu não vou aparecer para te importunar. Se eu conseguir confirmar o que você me pediu, te mando um e-mail.

- Está bem. Pode ficar tranqüilo que assim que você me entregar as fotos eu te dou o dinheiro.

Zé Colméia calçou novamente os sapatos, pegou mais dois bombons no pote em cima da mesinha e os colocou no bolso da calça.

- Então até breve, Henrique.

- Até mais, Zé.

E saiu, deixando os embrulhos dos bombons que comera em cima do sofá.
* * *

No feriado de sete de setembro fui ao shopping me encontrar com uma amiga a quem não via há muito tempo. O lugar estava abarrotado de gente e eu cansei de esbarrar nas pessoas pelos corredores. Isso me deixou nervoso. Não gosto de multidões. Quando eu era garoto, me perdi de minha mãe numa grande loja de departamentos, e por pouco não passo a noite preso na seção de roupas femininas. Para minha sorte, um segurança que fazia a última ronda antes de fechar me encontrou dentro do trocador onde eu havia me refugiado. Chorei tanto ao reencontrar minha mãe. Foi o fim do Natal para mim. Mas, pensando bem, é possível que minha aversão a multidões não advenha disso. Trata-se de uma explicação muito primária, cara aos enredos policiais em que o detetive tem de superar suas limitações para salvar a vida da moça indefesa. Eu já vi esse filme.

Mas eu contava que ia me encontrar com uma antiga amiga, Luciene. Há uns doze anos, no colégio Santa Rita de Cássia, nós costumávamos jogar handebol no mesmo time. Ela era a melhor jogadora da equipe, goleiro algum conseguia agarrar seus torpedos de fora da área. Uma vez Luciene arremessou a bola com tal força em direção ao goleiro que o coitado teve de ser levado às pressas para a enfermaria. Depois disso ninguém mais quis jogar no gol contra o nosso time. Luciene ficou com essa pecha de carrasco, mas na intimidade não deixava transparecer nem de longe a truculência com que lançava as bolas ao gol.

Eu me lembrava disso e muito mais enquanto aguardava por ela sentado a uma mesa da minha lanchonete preferida do shopping, a única que servia cafés bebíveis naquele recinto. O fato de Luciene estar atrasada em quarenta minutos deixou-me irrequieto, e decidi ir à livraria no mesmo corredor da lanchonete, de onde eu poderia avistar a sua chegada.

Folheei alguns romances e livros de auto-ajuda só por gozação. Quando a vendedora se aproximava de mim para me abordar, eu ia para o outro lado da loja, me abaixava diante de alguma estante e fingia examinar a lombada de alguns títulos que me interessavam. Às vezes eu ficava com pena dela e lhe dirigia uma pergunta qualquer, à qual ela respondia prontamente. “Este está saindo por 39 e 90, senhor!”, “O senhor já leu o último do Paulo Coelho? Não? Está na promoção. Sai por apenas 29 e 90!” Certo, já basta. Não quero mais saber de preços. Quero saber de Luciene. Onde está ela? Se ela sabia que não poderia comparecer ao nosso encontro, por que me ligara de manhã cedo, dizendo que estava morrendo de saudades e que tinha muitas novidades a me relatar? Bem, isso só ela poderia me esclarecer. Mas eu não tinha a mínima idéia de onde ela poderia estar agora, uma vez que não me passara nenhum endereço ou telefone de contato, na certa porque não desejava mesmo ser encontrada; só dissera que precisava me ver, num tom entre saudosista e eufórico, que acabou por me deixar excitado.

Saí da livraria e estaquei diante duma vitrine repleta de manequins de plástico. Em criança essas criaturas sempre me fascinavam, instigavam minha imaginação. Quando acompanhava minha mãe às compras, eu sempre dava um jeito de me desvencilhar dela e me intrometer entre esses bonecos, para poder tocar seus pés, suas mãos, e os seios das fêmeas; se bem que falar em macho e fêmea em relação aos manequins soe um tanto estranho, de vez que se tratam de criaturas assexuadas, ainda que não raro elas despertem o desejo infantil de garotos tão imaginativos quanto eu já fui. Isso é o tipo de coisa que a gente não diz a ninguém. Talvez por pura falta de interesse. Mas acredito que se nós compartilhássemos confissões desse tipo com mais regularidade, o mundo seria um pouquinho melhor, ou então uma merda completa.

- Henrique!? – senti uma mão tocar o meu ombro.

Virei-me afoito, e para minha decepção dei com o rosto de um homem moreno, olhos e cabelos igualmente negros, estatura mediana.

- Que surpresa boa encontrar você aqui, rapaz! Lembra de mim? Túlio, o Zé Colméia! Faz mais de dez anos que a gente não se vê – e veio de encontro a mim para o abraço, do qual participei com indisfarçável acanhamento.

Tentei buscar lembranças daquele homem na minha memória, mas à minha cabeça só vinham imagens de Luciene lavando o rosto no bebedouro depois de uma longa e intensa partida de handebol.

- Você está mudado, cara. Eu quase não o reconheci – dizia, com um escancarado sorriso de contentamento.- Puxa, é incrível como a gente perde contato depois que termina a escola, não é? Você é um dos poucos colegas que eu reencontro há anos. Então, você tem visto o pessoal?

- Na verdade eu estava esperando por uma colega nossa, a Luciene. Você se lembra dela?

- Claro que lembro. Ela arrasava no handebol. Vocês dois namoraram, não foi? Eu me lembro que vocês não se desgrudavam, o pessoal comentava direto.

- Não, nós éramos apenas amigos. Bons amigos, de fato. Por isso o pessoal falava tanto de nós dois.

Ele usava calça jeans, camiseta preta e sapatos vinho. Os cabelos estavam hermeticamente penteados para trás, e com muito gel.

- Agora que a gente se encontrou, não podemos mais perder contato. Você tem e-mail, telefone? A gente podia combinar de sair junto qualquer dia desses. Você já foi ao Paradise? É uma boate incrível, chove mulher por lá. Você precisa conhecer!

- A gente pode combinar, sem dúvida.

- Beleza. Agora eu vou indo que não quero atrapalhar o seu encontro. A Luciene deve estar vindo aí. Um grande abraço, Henrique – estendeu a mão para me cumprimentar.

- Até mais, Túlio. Tudo de bom pra você.

Voltei à lanchonete e não encontrei Luciene. Um casal acabara de desocupar uma mesa, e resolvi me sentar para comer alguma coisa. Pedi um pedaço de torta de frango e um suco de caju. A atendente me lembrou alguém conhecido. Tinha peitos bonitos e um comprido rabo-de-cavalo. Acho que sorri para ela mais do que devia. Pedi um café, e mergulhei aquele tablete de chocolate na xícara. O gosto não era tão bom quanto eu havia suposto. Precisei acrescentar um pouco mais de açúcar para terminar de beber o café. A atendente por vezes parecia olhar para mim, mas acho que era objeto da minha imaginação. Cogitei de pedir outro café, mas desisti assim que vi a atendente entrar para a cozinha e não voltar mais. Ela me lembrava alguém muito especial. Ela me lembrava Andréia.

* * *

No dia em que Andréia me deixou, recebi uma correspondência que despertou minha atenção para um assunto que eu até já esquecera de tão ultrapassado. Dizia respeito à herança que minha falecida mãe me havia legado; nada muito vultoso, apenas uma casa modesta num bairro de classe média de São Paulo e algumas jóias de família. Mas como eu não possuía irmãos ou qualquer outro parente próximo com quem tivesse de dividir tais bens, eles me seriam de grande valia. Eu pensava em investir na minha educação, fazer um curso de jornalismo talvez, ou então tentar abrir meu próprio negócio. Havia algum tempo eu pensava na possibilidade de abrir um bar estilo pub na cidade onde nascera, no interior do estado, visto que na região havia poucos estabelecimentos semelhantes a esse, e nenhum completamente igual. Me atraía o charme dos extensos balcões de alumínio onde qualquer pessoa pudesse se acomodar e puxar papo com os demais convivas. Na verdade o impulso inicial partira dos filmes americanos em que homens e mulheres solitários chegavam a esses bares, pediam bebidas, e quase sempre terminavam a noite em companhia de pessoas interessantes, que mudavam suas vidas definitivamente, para o bem ou para o mal.

Todas essas possibilidades seriam estudadas com cuidado mais tarde. Primeiro eu precisava conferir a tal carta intitulada Aviso de Chegada. Eu teria que comparecer a uma repartição pública para retirar alguns documentos relativos aos trâmites do processo de recebimento da herança, ou algo que o valha. Foi isso o que o advogado que cuidava do caso me explicou por alto. A bem da verdade, eu não me mostrava deveras interessado no assunto. Andréia havia ido embora e levado consigo boa parte do meu entusiasmo; agora eu andava por aí feito um espantalho, desprovido de ânimo e de sonhos.

Diariamente eu saía do banco por volta das cinco da tarde e ia caminhando pra casa. Depois que minha bicicleta havia sido roubada no estacionamento de um supermercado, perdi completamente o gosto pelo ciclismo, que outrora me provera tanta satisfação. Eu sabia que estava cometendo um erro ao sucumbir diante da ação dos ladrões. O correto seria comprar outra bicicleta e seguir minha vida com um pouco mais de cuidado dessa vez. Era exatamente o que eu precisava fazer em relação à Andréia. Se ela escolhera viver com outro homem, azar o dela. Se ela achara melhor ter filhos com outro homem, que fosse pro inferno. Não havia sido eu quem a expulsara de casa, ela se fora por vontade própria. Eu não tinha mais nada a ver com a vida dela; com quem ela dividia a cama, agora, pouco me importava. Contanto que não me pedisse para perdoá-la, ou para pedir perdão, o que seria ainda mais descabido...

- Então Luciene não apareceu mesmo! – exclamou Túlio, acomodando-se na banqueta do telefone.

Uma semana após nosso encontro no shopping Túlio apareceu em casa de repente, numa quinta-feira à noite. Chegou dizendo que tínhamos muito que conversar, e antes que eu pudesse lhe perguntar de que modo havia conseguido meu endereço, ele se colocou porta adentro e pediu algo para beber.

- Você não se incomoda de eu usar o telefone? Eu juro que é rápido. Preciso dar um recado pra minha irmã.

Faria diferença se eu dissesse que me incomodava?

- Pronto. Agora me fala mais sobre você. Quer dizer que a Luciene te deu um bolo. É, meu caro, você tá mal de namorada.

-Eu já disse que ela não é minha namorada. Não estou namorando ninguém. Eu estava, mas acabou há pouco tempo.

Zé Colméia deambulava pelo apartamento, observando de perto cada móvel e objeto de decoração.

- Acabou, é? Durou quanto tempo?

- Pouco mais de dois anos. Andréia, o nome dela. Nos conhecemos numa festa que um amigo nosso organiza a cada dois meses. É uma reunião amistosa onde amigos e conhecidos batem papo, bebem, fazem planos pro futuro, essas coisas. Funciona assim: cada participante antigo pode levar um conhecido à festa, e deste modo o apartamento fica menor a cada edição do evento. Eu fui introduzido no grupo por um amigo que infelizmente morreu ano passado, num acidente de carro. Com Andréia ocorreu o mesmo: uma amiga a levou à festa. E foi assim que nos conhecemos. Trocamos telefone, no dia seguinte ela me ligou, e marcamos uma viagem para Trindade. Lá nos apaixonamos, e decidimos morar juntos. Ela veio pra minha casa. Trouxe suas roupas, seus livros, seus perfumes, suas plantas, suas quinquilharias. Foi ótimo. Nunca fui tão feliz em toda minha vida. Eu saía para trabalhar e ela ficava em casa, ajeitando as coisas, cozinhando pra nós, ouvindo música... Às vezes ela ia me esperar na porta do banco, e saíamos para tomar um chope. Nos feriados íamos pro litoral, Andréia se bronzeava toda. Eu enlouquecia com as marcas do biquíni.

Zé Colméia enfiou a mão no pote de bombons e escolheu um demoradamente, depois o desembrulhou e o levou à boca com vagar.

- Nós continuamos a ir a tal festa do nosso amigo, mas nunca levamos ninguém conosco. O apartamento já estava lotado demais, era o que achávamos.

- E você continua a ir a essa festa?- perguntou Zé Colméia, espreguiçando-se no sofá.

- À última eu não fui. Fiquei com medo de encontrar Andréia por lá, acompanhada de Antônio. Eu não saberia como agir. Acho que enfiaria a mão na cara dele, caso ele a beijasse na minha frente. Não sou tão civilizado assim.

- Mas e esse tal de Antônio? Como foi que ele surgiu na história de vocês?

* * *
Para minha surpresa Luciene me adicionou no Orkut três dias depois de ter me deixado esperando plantado na praça de alimentação do shopping, sem qualquer consolo ou satisfação. Anexou também ao seu álbum virtual algumas fotografias de nossa adolescência interiorana. A foto do nosso beijo na quermesse do bairro, que eu acreditava estar em seu poder, não foi adicionada com as demais. Mas eu não a reclamei. Não queria dar sinais de que não me havia aborrecido com o fora que ela me dera. Por isso não respondi às mensagens que me escreveu, todas belamente redigidas e ornadas por coraçõezinhos e querubins chorões – que a despeito do encanto que me suscitaram, não me fizeram render aos apelos da autora.

Não compareci ao segundo encontro proposto por Luciene. Preferi ficar em casa relendo antigos cartões de datas comemorativas. Alguns continham a letra miúda e arredondada de Andréia. Sua escrita era sensual, dava vontade de reler sem parar. Com poucas palavras ela compunha uma mensagem capaz de sobreviver ao tempo, sem que para isso demonstrasse ter dispensado o menor esforço. Acho que ela poderia ter sido uma boa escritora se quisesse, não obstante fosse muito preguiçosa. Às vezes tinha preguiça até de fazer amor. Principalmente no verão. E quando isso acontecia, eu sempre me lembrava de uma personagem de Spike Lee, no filme “Faça a Coisa Certa”, que hesitava em ir para a cama com o namorado em razão do calor insuportável que fazia em Nova Yorque. Mas quando Andréia se mostrava inteiramente disposta, nosso amor chegava aos píncaros, e incomodava aos vizinhos. Dona Filomena, a viúva que dividia o apartamento com um casal de poodles, de vez em quando dava pequenas batidas na parede com sua bengala, no intuito de chamar nossa atenção para o escândalo que estávamos fazendo. Certa vez ela até ameaçara de se reportar ao síndico, caso as nossas orgias noturnas não cessassem. E no entanto ela foi a primeira a dar pela ausência de Andréia, deis dias após ela ter me deixado. A simpática senhora bateu à minha porta num domingo de manhã, quando eu me encontrava em estado lastimável no sofá da sala. Não fazia a barba havia uma semana, as unhas estavam a ponto de se encurvar, e o hálito agredia qualquer um que estivesse a menos de três metros de mim. Mas fiz o possível para ser gentil com ela, que afinal demonstrava preocupação para com o vizinho de lado, o que é muito raro hoje em dia. Normalmente as pessoas morrem trancadas dentro de casa sem que ninguém dê pela sua falta. Eu cheguei a temer tal situação quando passei a morar sozinho em São Paulo. O que para muitos seria motivo de felicidade plena, para mim se apresentava como uma possível ameaça.

Eu exigia de mim mesmo o máximo de atividade possível. Andava de um cômodo a outro, aguava as plantas, ligava o som no volume máximo, me exercitava no chão da sala, às vezes de madrugada, nu em pêlo. A qualquer minuto Andréia entraria pela porta carregando suas malas, e eu a abraçaria com força para nunca mais deixá-la partir. Se ela desejasse adotar uma criança, eu não me oporia; se quisesse animais de estimação, eu os buscaria para ela; se desejasse uma aventura sexual qualquer - coisa de uma noite, para em breve se perder na memória -, eu mergulharia de cabeça com ela. Eu faria suas vontades, desde que ela esquecesse Antônio de uma vez por todas. Bastaria entrar por aquela porta que seríamos um casal novamente. Mas a realidade é que apenas uma pessoa me freqüentava ultimamente: Túlio. E por mais que eu desse sinais de que sua constante presença em meu apartamento me aborrecia, ele ignorava tudo cinicamente, emendando um assunto no outro sem me dar chance de apor novos pontos de vista. Na verdade eu precisava colocar um termo nisso o mais rápido possível, do contrário acabaria por me envolver de tal maneira nos devaneios de Túlio, que ao final de tudo eu não saberia bem quem eu era e nem tampouco que já havia sido alguém um dia.

- Eu não quero que você fique constrangido com isso tudo. Se for desconfortável falar sobre isso, por favor não o faça – dizia Zé Colméia, folheando uma revista que apanhara no cesto ao lado da mesinha do telefone.

- Na verdade me sinto melhor agora. Eu não tenho conversado com muita gente, sabe? - eu dissimulava. – Às vezes compartilhar detalhes do nosso relacionamento com outra pessoa me aproxima de Andréia de certa maneira. Não sei se ela costuma fazer o mesmo; acho que não, pois parece viver bem com Antônio; e também não sei se ela aprovaria minha atitude. Também pouco importa. A dor-de-cotovelo é minha e eu faço dela o que bem entender.

- É difícil, para mim, entender por que vocês se separaram, se pelo que você diz, na intimidade a relação era tão gostosa. Eu tenho que confessar que nunca tive um relacionamento tão intenso quanto o que você está me relatando. Aposto que você se lembra de cada detalhe, de cada cheiro, de cada sabor. Afinal de contas, dizem que é por meio das pequenas coisas que um casamento se perfaz. Não que eu entenda muito de casamentos, longe disso, mas conheço bastante sobre casais, suas alegrias e suas dificuldades. Nós vivemos cercados por casais felizes e infelizes desde o início da vida. Meus pais, por exemplo, eram muito infelizes. Meu pai traía minha mãe o tempo todo. E ela sempre se fez de desentendida. Acho que por medo de não ter como se sustentar, caso se separasse dele. Sempre achei essa situação muito angustiante. Imagina: estar preso assim a um relacionamento, sem perspectivas de se libertar. Ela devia se sentir muito sufocada. Não sei como sobreviveu até a morte de meu pai, e ainda se manteve saudável por tantos anos, mesmo sem ter se relacionado com mais ninguém. Nunca perguntei a ela se havia se apaixonado por outra pessoa, depois que meu pai morreu. Tive medo, vergonha, sei lá. Preferi pensar que ela estava feliz, já que havia se livrado do homem que a maltratara tanto. Às vezes é melhor deixar que as coisas caminhem por conta própria, ou pelo menos é assim que encaro os problemas para os quais não tenho uma solução imediata. Não sei se com você ocorre o mesmo... Se eu me casar um dia... Não faço planos, prefiro deixar acontecer. Mas seu vier a me casar um dia...

O telefone tocou. Era como se Deus tivesse ouvido as minhas preces, ainda que eu o houvesse negligenciado desde sempre.

Reconheci a voz do outro lado da linha de imediato: Andréia. Parecia estar gripada, ou então que havia acabado de chorar muito. Disse que precisava pegar algumas roupas que de fato esquecera no meu apartamento. Assenti. Era só combinarmos um horário. Ficou em silêncio por alguns instantes, e em seguida disse que achava melhor mandar alguém pegar as roupas para ela. Tive vontade de pedir que viesse pessoalmente, mas só então percebi que não era tão fácil me rebaixar de verdade como o era nas tardes insones que eu passava malhando no chão da sala, nu, às vezes deixando-me levar por antigos momentos de prazer a dois, e acabando por me masturbar da maneira mais juvenil, manchando o tapete, as almofadas de veludo que guarneciam o sofá maior, as plantas da varanda, os móveis, os eletrodomésticos, e tudo o mais que encontrava pela frente durante essa minha masturbação errante.

Por fim concordei em receber a tal amiga de Andréia. Chamava-se Letícia, e viria no domingo à tarde.
* * *
No dia seguinte ao telefonema de Andréia, compareci ao fórum para a retirada dos documentos relativos à herança de minha mãe. O moço que me atendeu era alto e robusto, usava um cavanhaque que lhe conferia um ar despojado, conquanto suas roupas estivessem de acordo com o ambiente burocrático da repartição. Enquanto ele remexia em algumas pastas de papelão, eu fiquei a observar a diligência dos demais funcionários. Um homenzinho atarracado ajeitava alguns processos em várias pilhas ao fundo da saleta em que nos encontrávamos, ao passo que uma mulher trajando um vestido azul de veraneio datilografava ruidosamente a uma máquina cinza, a qual eu me lembrava de ter utilizado muitos anos atrás no banco.

- Assine aqui, aqui, e aqui, por favor – instruiu-me o funcionário do cavanhaque.

Dei uma lida rápida e ato contínuo assinei nos lugares indicados.

- O senhor precisa voltar ao fórum no dia 20 de novembro, acompanhado do seu advogado, para... – ele me passou todas as informações.

Quase perguntei a ele quando era que eu iria colocar a mão no dinheiro, mas desisti com medo de que ele encarasse a pergunta como um ato hostil de minha parte. Afinal, ele até que me tratara com deferência. Apesar de toda a procrastinação arrastada, ele só estava cumprindo com o seu dever. Não era sobre ele que eu deveria soltar os meus cachorros; aliás, eu não tinha idéia de quem deveria pagar por aquilo.

Na parte da tarde voltei ao banco para colocar algumas pendências em dia, mas não consegui retirar da cabeça a voz trêmula de Andréia ao telefone. Todas as moças a quem eu atendia se pareciam com ela. Cheguei mesmo a pensar que emprestara dinheiro a ela dezenas de vezes. Era como se eu houvesse dito sim a ela amiúde, e isso me deu uma certa alegria. Seu corpo se formava em minha memória a partir de fragmentos das mulheres às quais eu havia atendido. O rosto rotundo e expressivo de uma se aliava ao torso curvilíneo de outra, que, por sua vez, se encaixava aos membros firmes e graciosos de uma terceira, dando à figura feminina uma feição idealizada e artificial. Na verdade isso só ocorria porque a verdadeira imagem de Andréia se havia perdido na minha memória. Mas o que mais me angustiava não era isso, e sim o fato de com a figura de Antônio não ter sucedido o mesmo.

Eu me lembrava com detalhes do homem que, numa tarde de quarta-feira, encontrei aos beijos com Andréia no cinema. Na ocasião, saí um pouco mais cedo do banco que o costume, uma vez que não possuía muita carga de trabalho, e resolvi conferir a programação do cinema pela internet. O filme ao qual havia tempos eu desejava assistir entrara finalmente em cartaz, então resolvi aproveitar o tempo livre para ir vê-lo. Não convidei Andréia porque sabia da sua pouca paciência para longas-metragens; ela sempre dormia antes da metade do filme, e eu sempre acabava por me aborrecer com ela, que não tinha a menor consideração pelos títulos que eu escolhia com todo o cuidado na locadora.

Antes de entrar para a sessão das 16 e 30, resolvi tomar um café na minha lanchonete preferida do shopping. Pedi alguns pães de queijo, muito ruins por sinal – o forte da lanchonete era mesmo o café. Comprei também algumas balas de canela, as quais pretendia chupar durante o filme. Depois fui direto para o cinema, pois não queria perder sequer os trailers. Era um costume que cultivava desde moleque: nunca entrava para a sala após o início da exibição. Caso isso ocorresse, dava meia volta e só retornava ao cinema num outro dia, ou então esperava o filme ser lançado em DVD.

Nesse dia, porém, aconteceu de eu entrar atrasado para a sessão, em razão da dor de barriga provocada pelos pãezinhos de queijo. Mas, ao invés de dar meia volta, resolvi permanecer na sala, já que não havia perdido muito do filme, apenas dois ou três minutos que não comprometeriam o meu entendimento da trama.

Sentei-me no meio da terceira fileira contando de baixo pra cima. Havia pouco mais de dez pessoas no local. Na tela, dois rapazes conversavam sobre suas aventuras sexuais. Quando um deles fez menção à maneira como havia feito sexo oral na namorada, gritinhos irromperam do fundo da sala. Olhei discretamente para trás e vi que se tratava de um grupo de adolescentes que decerto matavam aula. Jurei pra mim mesmo que, se as intervenções voltassem a se repetir, eu iria até lá e os expulsaria da sala. Mas na realidade eu sabia que não tinha poderes para tanto. Coloquei uma bala de canela na boca e concentrei-me no filme, que me agradava apesar do tom forçado de algumas passagens. Foi então que uma mulher desceu lentamente o corredor à minha direita, e eu percebi que não era outra pessoa senão Andréia. Minha reação foi a de não me mover, para que ela não me descobrisse, embora caminhasse displicentemente. Vestia uma roupa à qual eu nunca vira antes, e os cabelos estavam soltos, apesar do verão. Quando retornou, pude sentir o seu perfume característico, e dessa vez me abaixei na poltrona para não ser reconhecido. Depois que passou por mim, segui-a com o olhar até o lugar onde se sentou, ao lado de um sujeito um pouco mais alto do que eu, braços e pernas compridos, ombros largos, cabelos claros. Eu não precisava ver mais nada, mas ainda assim a vi abraçar-se àquele homem, beijá-lo longamente, ignorando o filme por um outro motivo que não o de ter pouca paciência para acompanhá-lo até o fim.

Saí do cinema imediatamente, passando muito mal. Do lado de fora, uma funcionária perguntou se estava tudo bem comigo, e respondi que só me sentia um pouco indisposto. Aí fui ao banheiro, lavei o rosto, e depois caminhei na direção de casa. No meio do caminho, resolvi ir para outro lugar. Tomei um táxi e fui para um bar onde um amigo me levara certa vez. Um ambiente muito gostoso, música ao vivo e suave, um grande balcão onde qualquer um podia se acomodar e beber o que quiser sem ser importunado. Eu afogava minhas mágoas de um modo quase patético, era um mau bebedor e não sabia ao certo o que se devia beber numa situação dessas. Pedi ajuda ao barman, que me recomendou um coquetel de vodca qualquer. Tomei uns oito desses, paguei a conta e fui dar uma caminhada pelas ruas do bairro. Eu sabia que aquela região era um reduto de intelectuais, e fui parando em alguns botecos e inferninhos onde se bebia muito e se tocava os mais diversos tipos de música; até num sarau fui parar. Uma menina loira me fez beber um pouco de tequila, e depois insistiu para que eu declamasse diante de todos um poema de Roberto Piva, mas consegui dissuadi-la da idéia a tempo de evitar o vexame.

- Mas você não voltou pra casa nesse dia? – perguntou Zé Colméia.

- Não. Dormi no apartamento que a menina loira dividia com mais três colegas. Elas eram candidatas a top-models fracassadas, que sobreviviam em São Paulo fazendo pequenos trabalhos como modelo, recepcionistas de eventos, animadoras de festas infantis, essas coisas.

- Você transou com ela?

- Não tenho certeza. Eu estava muito bêbado. Fui vomitando o caminho todo entre o barzinho onde a encontrara e o seu apartamento. As outras meninas não estavam lá, por isso eu pude ficar sem problemas. No dia seguinte fui de lá direto para o banco. Ela me deu seu telefone, e eu fiquei de ligar assim que resolvesse meus problemas com Andréia.

- Puxa, que incrível! Quem dera minha vida você tão agitada quanto a sua. Eu vivo à caça de aventuras, mas sempre acabo encolhido em um canto qualquer, me lamentando por aquilo que não fiz – Túlio acrescentou com um perceptível tom de pesar.

Era madrugada de sábado, e na tarde de domingo Letícia, a amiga de Andréia, viria ao apartamento apanhar as roupas que minha ex havia esquecido, e as quais eu já ajeitara numa sacola de fibra de bambu, que também era dela. Túlio estava comigo desde o início da tarde. Chegara portando duas caixas de cerveja em lata e um pacote de amendoim japonês. Eu estava conectado à Internet, visitando alguns blogs que colegas do banco me haviam recomendado, e dando uma lida no noticiário do dia. Havia conferido que Luciene me enviara um convite para integrar a comunidade da Turma de 86 do Colégio Santa Rita de Cássia, no Orkut. Dei uma espiada só por curiosidade, encontrei outros tantos amigos que andavam sumidos, até uma garota magricela que não falava com ninguém. Era incrível: no Orkut todos se mostravam. Até os que sequer abriam a boca na escola faziam comentários, integravam comunidades, sérias e gozadas, publicavam suas melhores fotos... Era do caralho! De repente todos conviviam em pé de igualdade, guardadas as diferenças no número de amigos de cada um.

- Esse dia Andréia foi me esperar na saída do banco. Disse que ficara muito preocupada comigo, que ligara para a polícia, e que saíra à minha procura pela cidade toda. Me abraçou forte e pôs-se a chorar no meu ombro. Eu, molenga que sou, quase lhe pedi desculpas. Mas mantive-me firme. Em casa contei a ela o porquê de eu ter passado a noite fora. Foi um choque grande para ela, pude perceber pela maneira que fincava os dedos longos e finos em sua cabeleira revolta. Pôs-se de joelhos, disse que queria morrer, que não era para as coisas terminarem daquela maneira. Ameaçou se jogar pela janela. E depois que se acalmou, pedi que me contasse como conhecera Antônio. (Túlio ouvia tudo atentamente, enquanto tomava a última latinha de cerveja que trouxera.) Ela relutou, não queria tocar no assunto, mas eu disse que precisava saber: era um direito meu. Então ela contou que ele trabalhava como gerente de vendas numa loja de móveis no centro da cidade, e que sempre cruzava com ele quando ia me esperar à porta do banco. O porte atlético era resultado da carreira de jogador de voleibol que ele abandonara havia alguns anos, e das partidas que continuava a jogar nos finais de semana. A iniciativa partira dele; ela só se deixara vencer pelo cansaço. Vencida pelo cansaço... Imagine.

Esperei por um longo comentário de Túlio mas ele não veio. Meu interlocutor desmaiara no sofá à minha frente, coberto de restos de amendoim e latas de cerveja. Fiquei sem jeito de acordá-lo, então fui ao quarto e apanhei um lençol para cobri-lo. Ele ressonava como um bebê, os braços estirados rente ao corpo, os pés pendiam da extremidade do sofá. Eu invejava sua facilidade de pegar no sono. Mesmo sob efeito do álcool, tinha dificuldades para adormecer. Mil coisas passavam pela minha cabeça – eu não conseguia me livrar do entulho que me saturava a memória. E mesmo padecendo desse mal desde garoto, ainda não me acostumara. O jeito era imaginar que nunca sofrera de insônia, que nunca me sentira só na cidade grande, que nunca fora traído ou desdenhado por velhos amigos... Era deitar na cama e morrer, para no dia seguinte renascer com mais força.
* * *
Acordei com uma réstia de luz solar que me abrasava a parte esquerda do rosto. Alguns pombos se atracavam no parapeito da sacada; acho que disputavam uma fêmea; seu arrulhar também contribuíra para que eu despertasse. Tive vontade de assassiná-los. Era cedo demais, e eu não tinha nada para fazer. Lembrei-me que Zé Colméia estava dormindo na sala. Vesti um short e fui até lá. Corri os olhos pelo cômodo mas não o encontrei. Acho que ficara com vergonha de me acordar e resolvera sair à francesa.

Coloquei um cedê do Lenine para tocar e fui tomar banho. Eu pretendia dar uma volta antes do almoço para espairecer. Compraria um frango-assado na padaria a três quarteirões do meu prédio. Eu comia esse frango todo domingo. Poderia pedir que o entregassem se quisesse, mas preferia o pretexto para fazer uma caminhada. À tarde a amiga de Andréia viria, e eu precisava estar em casa. Não haveria problemas. Seria coisa de minutos, e mais tarde eu daria um jeito de matar o domingo.

Após o almoço, peguei no sono e acordei com o som da campainha. Pulei do sofá e corri ao banheiro para lavar o rosto. Depois fui até a porta e olhei pelo olho mágico: era uma moça loira, baixinha, e de cabelos curtos.

Abri a porta.

- Oi! Eu sou Letícia, amiga da Andréia. Ela me pediu pra pegar as roupas dela aqui – disse sorrindo.

- Eu estou sabendo. Entra, por favor.

- Licença.

Entrou e postou-se ao lado do sofá menor. Vestia um bustiê cor-de-rosa e uma saia jeans. Senti de pronto seu perfume adocicado misturado ao cheiro de cigarro. Era até agradável.

- Eu posso usar o seu banheiro para fazer um xixi? – perguntou-me sem jeito, dando a ver suas belas covinhas do rosto.

- Claro. Seguindo esse corredor, é a segunda à direita. Fique à vontade.

Assim que ela entrou no banheiro, fui até a varanda e olhei para a entrada do prédio. Como eu havia imaginado, Andréia a estava esperando. O estranho era que estava acompanhada de um sujeito a quem eu nunca tinha visto. Não era Antônio. Era um homem moreno, um metro e setenta, mais ou menos, algo musculoso, um corte de cabelo militar. Estavam encostados em um conversível vermelho; ela de costas, aninhada no corpo dele. Ele mexia nos cabelos dela e lhe falava à orelha. Uma mão descia pela perna dela e lhe alisava a coxa. Eu mordi meu lábio inferior até sentir gosto de sangue.

Letícia voltou do banheiro e me surpreendeu chorando.

- O que aconteceu? Eu posso te ajudar?- perguntou, encabulada.

- Nada. Só uma dor de cabeça forte. Logo passa.

Fui ao meu quarto e peguei a sacola com as roupas de Andréia. Elas ainda recendiam ao perfume da dona. No caminho de volta à sala chorei um pouco mais. Meus olhos ardiam de ódio. Eu devia estar horrível pelo jeito com que ela me olhou. Entreguei-lhe a sacola. Ela disse que estava pesada, mas não ofereci ajuda. Acompanhei-a até a porta e disse até-logo.

- Você quer que eu diga alguma coisa a Andréia? – perguntou, baixando o rosto em seguida.

- Não. Não precisa dizer nada.

Ela caminhou graciosamente até o fim do corredor. Linda, tinha o mundo entre as pernas.

* * *
Na segunda-feira faltei ao trabalho. Só me levantei da cama para ir ao banheiro. Fechara todas as janelas para perder a noção de quando o dia terminava e a noite tinha início. Minha cabeça latejava, e eu não sentia fome. Estranhei o fato de o telefone não ter tocado sequer uma vez. Será que ninguém se importava com o meu bem-estar? Acho que tanto fazia se eu estava vivo ou morto. Apenas Túlio tocando a campainha para me alertar de que aquilo que chamamos de vida continuava.

Hesitei um pouco antes de abrir-lhe a porta. Ele me disse que eu estava horrível. Uma perda de tempo. Notei que usava um brinco de argola no topo da orelha direita. A nova moda entre os gays, pensei. Será que dava a bunda também? Não valia a pena levar esse assunto adiante. Pedi um tempo para tomar um banho. Disse-lhe que ficasse à vontade – outra perda de tempo. Era como se o apartamento fosse dele e eu morasse de favor.

Após o banho, comemos o que sobrara do frango-assado dominical. Túlio pediu para abrir um vinho branco antiguíssimo que eu ganhara de minha mãe. Concordei. Tinha um gosto muito bom. Se eu soubesse disso, já o teria bebido antes.

- Andréia esteve aqui na frente do prédio ontem, junto com um cara estranho, que eu não conhecia – puxei assunto. Agora a presença de Zé Colméia me aprazia.

- Você acha que ela está traindo o Antônio com esse cara?

- Tenho certeza. Ela estava agarrada com o sujeito, encostada num carro vermelho. A não ser que Antônio seja um corno condescendente, está sendo traído com um tipo do exército. Percebi pelo corte de cabelo.

- Você quer saber o que eu acho? Pois eu acho que já passou da hora de você esquecer a Andréia. Por melhor que tenha sido a relação de vocês, acabou. Não há mais o que fazer. Agora é partir pra outra.

- É o que eu digo pra mim mesmo todos os dias. Mas não é tão fácil tirar Andréia da minha vida. Eu já tentei esquecê-la aos poucos, e não obtive sucesso; já tentei arrancá-la da minha cabeça de uma só vez, e acabei me impregnando dela ainda mais. É como você já disse: cada cheiro, cada toque, cada sabor. Eu me lembro das pequenas coisas. O cheiro bom de xampu que ficava no seu travesseiro; as calcinhas penduradas na parede do box; a curvatura dos mamilos; algumas sardas ao redor do pescoço... O hálito doce que me inebriava... E quando cantarolava uma canção de Adriana Calcanhoto no banho. Ah, o banho... Retirar os pentelhos de Andréia do sabonete era um divertimento.

Túlio apanhou dois bombons no pote sobre a mesinha de centro.

- E tudo terminado daquela maneira, na sala de cinema. Depois, quando eu os vi juntos pela segunda vez, reparei que Antônio era um sujeito muito distinto. E tive vontade de matá-lo. Tive vontade de matá-lo porque ele era mais alto do que eu, porque tinha compleição atlética... A verdade é que suas mãos eram grandes e bonitas. Andréia devia se sentir protegida. Acho que é isso mesmo. Agora, no entanto, ela o está traindo com um militar. E ele vai sofrer tanto quanto eu sofri.

Foi então que pedi a Túlio que investigasse Andréia, para ter certeza se ela estava ou não traindo Antônio. Uma curiosidade mórbida se apoderara de minha mente, e eu só conseguiria dormir de novo depois de sanada essa dúvida. De início, ele mostrou-se contrário à idéia, mas depois acabou por concordar, e por se disponibilizar a tirar algumas fotografias da adúltera ao lado do amante. E eu me comprometi a pagar pelas fotos.

* * *
Algum tempo depois voltei ao fórum acompanhado do meu advogado, e o que eu mais temia aconteceu. O processo de recebimento da herança havia sido indeferido. Tive um surto de fúria dentro da repartição, e fui escoltado até a saída por dois seguranças gigantescos. Eu me debatia como uma criança birrenta. Chorava de indignação. Como me negavam a herança, se ela me fora legada por minha mãe legítima? Era incompreensível. E o advogado que não conseguia interceder a meu favor? Será que estava mancomunado com alguém para me prejudicar? Era demais pra mim. Parecia que eles me abriam um ferimento à faca - extirpavam meus sonhos.

Vaguei pelas ruas como um pobre-diabo. Minha necessidade de falar com alguém era premente, mas nem mesmo Túlio dava as caras. Todos se haviam refugiado em seus próprios castelos. A vida na metrópole era assim mesmo: cada um por si. Pensei em voltar ao bar do extenso balcão de alumínio, onde poderia disfarçar minha solidão à vontade, e também extinguir de vez o sonho de abrir meu próprio pub no interior do estado. Os solitários de lá que esperassem por um novo redentor. Só me restara mesquinharia na alma. Eu iria pegar as fotos que Túlio tiraria de Andréia com o amante e entregá-las a Antônio, para que ele também sofresse.

Cheguei em casa e encontrei um bilhete de dona Filomena pregado à porta com fita adesiva: Andréia esteve aqui hoje à tarde. Precisa falar com você urgente. Me pediu para dar o recado.

Assim que terminei de ler o bilhete, Túlio apareceu. Perguntei-lhe se havia tirado as fotos, mas ele não respondeu. Entramos no apartamento. Fui até a cozinha e pequei duas latas de cerveja. Ele sentou no sofá menor, a cabeça baixa. Seu silêncio me irritava profundamente. Eu quis pegá-lo pelos ombros e sacudi-lo com força para que dissesse tudo de uma vez. Mas ele mantinha a cabeça baixa.

- Fala logo, porra! – explodi.

Engoliu em seco.

- Eu segui o itinerário que você me indicou mas não encontrei Andréia. Perguntei por ela aos vizinhos mas ninguém a conhecia. Eles nunca ouviram falar de Andréia nenhuma.

- Como assim? Você deve ter ido ao bairro errado. Eu te dei o papel com o endereço dela, os lugares que ela costuma freqüentar... Como você não a achou?

- Sinto muito, Henrique. Mas eu não encontrei nem sinal dela nem do amante. E se você quer saber, nem Antônio eu encontrei. Fui até a loja onde ele supostamente trabalha, só para saciar a minha curiosidade de conhecê-lo, mas ele não estava lá.

Coloquei a latinha de cerveja sobre a televisão. Eu não me sentia bem. Ou Zé Colméia estava louco, ou estava conluiado com Andréia. Era possível que ela o houvesse pagado para que ele não mostrasse as fotos a Antônio. Isso. Era bem possível. Andréia era ferina.

- Eu preciso ir embora, Henrique. Tenho outras coisas a fazer. Tchau! A gente se fala outra hora – levantou-se pressuroso e saiu sem dizer mais nada.

Então era isso: todos estavam conluiados. Todos juntos para me foder. Túlio, Andréia, Antônio, Luciene, o Advogado... Me apunhalavam pelas costas. Mas eu precisava tirar toda a história a limpo. Andréia tinha vindo ao apartamento, queria me dizer algo importante. Dona Filomena conversara com ela, podia me dar mais detalhes. Isso mesmo. Falar com dona Filomena.

Bati à porta da velha. Passava pouco das nove e ela devia estar assistindo à novela. Como ela não atendesse, bati novamente – agora com mais força. Por que os malditos cachorros não latiam para alertar a dona? Eu batia na porta como um babaca, os outros vizinhos começavam a reclamar do barulho. Mas eu precisava falar com dona Filomena. Por que não me atendia? Então só tinha ouvidos para o que lhe interessava? Para as minhas noites de amor com Andréia tinha ouvidos, e agora nada! Estava dormindo, tão cedo assim? Bati ainda mais forte, com o nó dos dedos. Um homem gordo, sem camisa, e de chinelos saiu no corredor. Dirigiu-me um palavrão qualquer, que ignorei. Dona Filomena não dava sinais de vida, os poodles não latiam. Uma mulher, o rosto coberto por um creme verde, também saiu no corredor. Abriu os braços, indignada, mandou-me à merda. Mas será que ninguém percebia que havia algo de errado? Eu batia com mais força, e dona Filomena não respondia. Meu Deus! Eles me insultavam, mas não viam que a velha podia estar morta dentro do apartamento. Logo começaria a feder! As pessoas morrem trancadas em casa e ninguém dá pela sua falta...


Guaratinguetá, 20 a 30 de novembro de 2006.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Dois corpos estranhos

“O rompimento os levou de novo a corpos do mesmo sexo, de onde ambos, agora viam, jamais deveriam ter se afastado”.

João Gilberto Noll / Berkeley em Bellagio


para Bianca, com distração


1. Camila


Para Camila o amor fora uma experiência traumática. Ter sido durante um tempo amante do próprio pai suscitou nela um profundo ódio a Freud. Que tinha ele de desvendar os segredos mais recônditos da alma humana? Quem lhe dera esse direito? Se o problema dele era tesão reprimido pela própria genitora, que o resolvesse isoladamente. Mas não, descobriu toda a sacanagem latente e resolveu escancarar, talvez não suportasse o peso sozinho, e agora todos os mortais – inclusive Camila – tinham de se conformar com o fato de saberem a verdade.

- Você leu Freud ao contrário – estirado na poltrona da sala, Marcos, o cigarro queimando entre os dedos, lhe alertava.

Intelectual metido a besta, teve vontade de dizer-lhe, mas a poltrona agora estava vazia, e em instantes seria ocupada pelo bichano que viria da varanda acomodar-se no local que julgava pertencer ao chefe da casa. E Marcos, onde estaria? Algures com um livro nas mãos, sem dúvida. Aquele cara não largava os livros nem pra cagar. Que ironia: um país com mais escritores que gente letrada. Era isso mesmo, não havia o que discutir. País de analfabetos, políticos corruptos, escritores saindo pelo ladrão, e banguelas. Até a televisão, que já fora uma das melhores do mundo, tornara-se medíocre. Às nove da noite, na telenovela, as personagens fodiam sem parar. Se Camila tivesse filhos, os mandaria pra cama antes da novela. Ou ainda melhor, não teria tevê em casa. Mas eram apenas ela e o gato persa; gato de gente fresca, segundo Marcos. Ali pelas seis da tarde a solidão batia, Camila corria a fechar as janelas do apartamento como se temesse evadir-se de si mesma por meio da última brisa da tarde. Em seguida preparava um lanche, colocava um cedê pra tocar, lembrava Marília, que há semanas não aparecia, sequer telefonava. Na secretária eletrônica, ainda o som de sua voz melíflua na última mensagem gravada: Oi, coração, trabalhando muito? Não te acho de jeito nenhum. Por que não apareceu no aniversário da Vivi? Há tempos eu não me divertia tanto! Estou com saudades! Faz tempo que não damos risada. A gente precisa sair. Campos não seria uma má idéia. Beijos. Me liga! - Pela enésima vez ouvia a mesma mensagem, e a cada vez acreditava extrair novos significados; recompunha o sentido das frases alterando a sintaxe, há tempos não me divertia tanto com beijos, acho que a saudade faz aniversário no coração... Escrevia as frases num caderno velho, o mesmo caderno que, em menina, usava para descrever as sensações que a vida diariamente lhe facultava. Com sua caligrafia impúbere registrara a aventura do primeiro beijo, o gosto da boca de outra menina, as palavras com a imprecisão costumeira; se realmente desejasse ser fiel a um acontecimento, tinha de relegá-lo ao sopé do silêncio, deixar que vicejasse por conta própria. Outra lição de Marcos. Palavras nunca se bastam; melhor é o silêncio. Em companhia de alguém, no elevador, Camila sempre largava uma palavra - era insegura demais para repousar no conforto do mutismo. Tinha que se despojar da autocomiseração, depositar no outro todo e qualquer indício de misericórdia. Ao caminhar pelas ruas, sentia-se íntima das pessoas no intuito de prolongar por um instante que fosse o prazer de dividir o mesmo espaço. E isso às vezes fazia dela um ser tardio. A velhice se lhe insinuava até mesmo no verão dos trópicos, quando tudo fedia a sexo.

Em cima da mesinha do computador uma pilha de provas de matemática esperava por ser corrigida. Assim que ganhasse coragem Camila tomaria um banho quente e em seguida daria início à correção dos testes. Agora se encontrava abandonada à mesma cama que tantas vezes sustentara o peso de dois corpos em brasa: ora o seu e o de Marcos, ora o seu e o de Marília. Do guarda-roupa velho vinha um ruído agudo de destruição: os cupins roíam a madeira morta e as traças comiam suas roupas e livros. Mesmo sem ser convidado, o gato intrometeu-se quarto adentro e aninhou-se junto ao torso da dona, com quem decerto imaginava manter um relacionamento amoroso. Para ele, Camila devia ser sua amante. Era ele quem a nutria de amor e compreensão, quem filtrava sua angústia transformando-a em pulsão de vida... O amante felino, tal qual o pai havia sido sem o saber. Pois, na impertinência da infância, Camila exigira da mãe a visão do pai nu. E foi assim que, após o banho, o homem se mostrou à filha da forma mais crua, a forma que, julgava, melhor contribuiria para a educação da menina.

O corpo do pai... tão diverso do corpo de Marcos, e no entanto todos os corpos seriam invariavelmente cotejados com o corpo úmido que o pai lhe exibira após o banho; toda carga de sêmen que lhe inundava o ventre não era outra senão a do pai, pois o corpo do homem era uno. Ela tantas vezes apaixonada pelo mesmo homem que a levava a passear nas tardes de domingo, ou pelo homem que selecionava os livros que deveria ler – e o fruto tantas vezes apodrecendo nas suas mãos. Isso se repetindo desde a puberdade, quando começara a explodir em peitos, coxas, estrias, sangue, desejo... Ou ainda a fome de viver que sentia, essa fome que a fazia triturar a carne do almoço com seus dentes de pantera – o pai a observá-la com o rabo do olho, como que espantado com tudo que acontecia com a menininha que outrora ria ante a primeira visão de um homem nu. E Camila tentando se espelhar na mãe, para descobrir o que afinal significava ser mulher, sendo que apenas anos mais tarde descobriria... Porque ser mulher era insinuar-se para a vida; era um decote, um brinco de pérola miúda; uma recusa oportuna – e não era nada disso.

Quando Camila completou quinze anos, a mãe - sua velha cúmplice - resolveu colocar as cartas para ela. Enquanto embaralhava, a mulher tinha os olhos fixos na filha, que aguardava, afobada, o desenrolar do destino que o baralho lhe revelaria. Uma a uma as cartas iam sendo postas sobre a mesa, até que, com sua unha cintilante e pontiaguda, a mãe apontou a carta que representava o homem da vida de Camila: o Valete de Ouros. O homem que a desejaria com ardor, que a impregnaria com seu cheiro indelével de macho para todo o sempre, que faria do seu próprio corpo um lugar ideal para se morar, e que a deixaria depois de uma discussão estúpida, tomando um táxi de volta para sua solidão.

Espreguiçava-se, tentando se livrar do limbo no qual o tédio lhe arremessara. A noite agora era uma mulher de meia-idade, pronta a devorar os rapazinhos em flor que nela se aventurassem. Camila, incomodada, rolava de um lado a outro na cama, sem coragem de se levantar. Podia ouvir o ronronar do seu gato fresco, o apito da chaleira do vizinho, o cricrilar dos grilos no terreno contíguo ao prédio, as sirenes perdidas no trânsito... e ainda ressoava em sua cabeça uma voz de mulher, há tempos não me divertia tanto com beijos, mas onde Marília agora?, em que festa?, em que porre de entorpecentes e desvarios?, nada, nada, somente o ziiiiiiiii! da porra da chaleira. Paralisada. Os músculos uma só tensão. Como exprimir o seu desejo, se o seu desejo era de morte? Não havia meios de se libertar desse cárcere abstrato. Porque ser mulher... Ela queria, ensaiara os passos necessários, mas quando da dança... Era diferente. Marcos já dizia: Viver tinha que ser de uma vez só. Marcos, o tipo alto, a pele amorenada, os cabelos de um tom levemente grisalhos – um charme, sem dúvida; e mãos, mãos grandes e protetoras; os traços sagazes, lembrando um prestidigitador que acabasse de realizar, com sucesso, seu último número de ilusionismo.

Soou a campainha. Camila, exasperada, colocou o travesseiro sobre a cabeça e apertou com força. As luzes todas apagadas. Somente os olhos coruscantes do gato a irradiar luminosidade. De novo a campainha. Logo vai desistir, pensou ela. Queria ficar assim, sôfrega, doída, porque também podia ser bom, era uma questão de saber gozar o momento. Mas a campainha tocava insistentemente. O gato pulou da cama e caminhou na direção da sala, abanando sincronicamente o rabo felpudo como um pára-brisa. Camila espreguiçou-se uma vez mais, sentou-se à beira da cama, ajeitou os cabelos, calçou os chinelos e saiu do quarto. Conferiu as horas no relógio do aparelho de som: nove e quarenta da noite. Andava devagar para não fazer barulho, logo iriam embora, não queria saber de visitas, não importava quem fosse. Tomaria um banho, se refaria, tinha provas a corrigir, talvez ligasse a televisão, uma espiada na novela, as personagens foderiam, sim, mas que importava? Que fodessem! Mas ela não abriria a porta, não agora. Foi até a cozinha, tomou um copo d’água, deixou cair um pouco de água no colo, água gelada, caminhou até a sala e bateu o joelho na mesinha do telefone, Merda!, ficaria roxo, mas não, não abriria a porta nem atenderia telefonemas. Encostou-se à parede rente à estante, ali os livros, os álbuns de fotografia, fotografias dos parentes, dos amigos, dos homens e mulheres com quem fora pra cama, do Valete de Ouros, o homem da “sua vida"... E a campainha a retinir. Camila grudada à parede, exausta, os pés de mulherzinha colados um ao outro, o coração palpitando; ensaiou uma espiada no olho mágico mas logo voltou atrás, resistiria, o pouco de água que caíra no vão dos seios evaporara e agora a queimava, tinha vontade de despir-se, de dar-se toda a seu amante felino, mas ele partira e não dera mais notícias, um táxi sem volta para sua própria solidão.

- Ainda que seja Deus à porta, eu não abro!


2. Marcos

Trinta e três – a idade de Cristo. E o que Marcos havia conquistado, além do coração doente? Difícil mensurar. Tinha a sensação de que a vida lhe escapava a cada segundo, sem que pudesse reagir. Mas isso era apenas angústia. Um garotinho de cinco anos poderia passar por isso sem sequer perceber. Agora sentia falta das noites insones em que acreditava sofrer demais. Sofria por amor, por ter tido que magoar alguém de quem gostava – a mãe, por exemplo. E sua sensação de culpa só foi mitigada quando teve uma conversa com um professor de literatura no ginásio, que lhe disse que o homem sofre mais por um pé na bunda do que por um câncer no intestino alheio –na medida em que a bunda é sua e o câncer é do Outro. Uma unha encravada nossa dói mais do que o ciático do vizinho, porque se trata da Nossa Unha. Assim sendo, por mais que haja compaixão de nossa parte, o sofrimento sempre será algo puramente individual.

Mesmo ciente disso, Marcos não conseguia ser paciente o bastante com aqueles que, por bem ou por mal, ignoravam sua doença. Não que quisesse ser adulado o tempo todo, procurava um equilíbrio. Esse equilíbrio que um homem busca durante a vida toda e nunca consegue atingir, Marcos queria alcançá-lo no pouco tempo de que dispunha.

Era o sétimo da fila para o transplante de coração. E, ao contrário do que ele próprio esperava, não se havia distanciado do que a vida podia lhe proporcionar de bom. Devia ter aberto mão do sexo, por exemplo, mas o sexo estava implícito em cada um de seus movimentos, desde o momento em que se levantava da cama até o momento em que retornava a ela para dormir. A vida pulsava indiferente a seu coração debilitado, e Marcos sonhava castelos erotizados, bravatas homófobas, fluidos corporais, piadas de duplo sentido. O “Professor Erótico”, este o apelido que ganhara de seus alunos. Sentia falta do ambiente desprendido da universidade, do tempo em que integrava um corpo maior, um todo. Pois agora estava abandonado à própria solidão, preso à doença que eclodira de súbito, entre um abrir e fechar de portas, entre o abrir e fechar de um zíper - num cochilo, numa troca de salivas.

Arfava só de caminhar de um cômodo a outro da casa. O corpo às vezes lhe pregava peças, fazia birra, se negava. O quintal se transformara num imenso descampado, o qual ele preferia evitar. Ansiava por cigarros, mas os cigarros haviam sido banidos da casa pelo pai. Marcos conseguira esconder alguns maços dentro do armário, mas agora não tinha forças para apanhá-los à altura que se encontravam. Atirara no próprio pé. Estava reaprendendo a viver. Escovava os dentes sentado no vazo sanitário para poupar energias. Tomava banho sentado numa cadeira de plástico. Lia pouco – o mesmo fôlego curto que tinha para escrever. Alem do quê, lhe era forçoso virar as páginas do livro. Estava relendo os “Morangos Mofados” de Caio Fernando Abreu e também “Contraponto”, de Aldous Huxley, livro que lera na adolescência e pelo qual se apaixonara. O começo era primoroso: aquela descrição sucinta da vida humana: a gestação, o parto, o crescimento, a prostração e a morte. Depois de se ler um livro como esse, não se conseguia escrever mais um parágrafo sequer. E no entanto ele havia sido teimoso. Desafiara as próprias convicções ao se aventurar pelas narrativas curtas. Nunca tentara o romance. Tinha a sensação de que morreria antes de chegar ao final da estória. Não, um romance não era pra qualquer um - exigia muito do corpo. E agora Marcos sabia que seu corpo sempre fora muito limitado, incapaz de suportar as centenas de páginas de uma narrativa longa.

Esperar pela morte de alguém para que pudesse receber um órgão novo era algo que Marcos preferia evitar. Era, sem dúvida, uma atitude hipócrita. Se sofresse morte cerebral em decorrência de um acidente de trânsito, por exemplo, gostaria que todos os seus órgãos e tecidos fossem reaproveitados. Todavia era difícil imaginar que alguém teria de perder a vida para que ele retomasse a sua. Não era uma questão de merecimento. Saber viver ou não era um ponto que não seria levado em conta. Marcos se apaixonara algumas vezes e nem por isso se julgava realizado. Pelo contrário, poderia ter sido feliz, no melhor sentido que o termo encerra. Ao lado de Camila talvez tivesse atingido um outro patamar da existência. O corpo de uma mulher podia ser um verdadeiro celeiro de maravilhas. Ainda mais um corpo como o de Camila: pele clara e sedosa, cheiro de algodão doce (!), cabelos lisos e compridos, carnes fartas, lábios ávidos de beijos e de palavras – quase uma Lolita decaída. Poderiam ter perpassado todo um dicionário de sensações, e nunca se dariam por satisfeitos. Mas onde se encontrava aquela menina agora? Decerto refugiada em seu casulo de incertezas, na companhia daquele animal estúpido. Marcos detestava gatos, e nunca escondera isso de Camila. Suportava a presença do bichano somente por consideração à namorada. Ou o mais correto seria dizer amante? Não sabia. Acreditava apenas ter vivido algo intenso ao lado daquela mulher. Juntos se achavam sossegados; a vida não precisava mais ser um road-movie. A necessidade de outros corpos havia-se tornado desnecessária. O maior responsável por isso fora Camila, com certeza. Marco só fizera se deixar levar.

Adotara o bissexualismo por falta de opção. Ser gay era um lugar-comum, assim como ser hetero. O mesmo se aplicava a crer em Deus ou não. E ainda assim os clichês o perseguiam. Mas agora tanto fazia. Aos poucos ia se despojando de si mesmo. Aquilo que representara para os outros já não importava mais. Sabia que tinha de viver até o “último suspiro”, pois havia os amigos, e o pai. Eduardo, o amigo mais íntimo, visitava-o freqüentemente. Trazia sempre o tabuleiro de xadrez, embora Marcos insistisse para que não o fizesse. Achava que xadrez era um jogo demasiado longo, e ele se cansava no meio de uma partida. “Estou fodido”, deixava escapar, e essa piada não tinha a mesma graça de antigamente, de quando era jovem – e fazia tão pouco tempo. Lembrava a canção: “Até bem pouco tempo atrás / poderíamos mudar o mundo/ quem roubou nossa coragem?” E na voz de Renato Russo tudo fazia tanto sentido. Poderia também ser uma sinfonia de Beethoven, ou uma música de Milton Nascimento... Mas repudiava as homenagens póstumas, e não queria trilha sonora no seu funeral. Isso lhe parecia coisa de adolescente que vê a si mesmo dentro de um filme com trilha sonora pop. Ridículo. A mocidade – que palavra antiquada! – sempre seria ridícula. Ele se distanciara totalmente dos jovens depois que se afastara da universidade. Havia lecionado em cursinhos também, e até conhecera adolescentes surpreendentemente inteligentes. Claro que conhecera garotinhos que liam “Harry Potter” e achavam que tinham descoberto o néctar dos deuses. Mas eram apenas garotinhos bobos. Ele também o fora em algum lugar da sua memória. Havia ainda outro atenuante em favor da mocidade: muitos de seus pares acadêmicos estavam lendo um tal de Dan Brown. Pior ainda: liam e trocavam comentários entusiasmados. Alguma coisa estava errada, e não eram suas preferências literárias. A humanidade mergulhara numa latrina repleta de utopias superadas. Não era difícil se dar conta disso agora, à idade de Cristo - que, diga-se de passagem, vinha ganhando releituras de deixar os cabeças do vaticano com o cu na mão. Uma ex-colega de faculdade lhe enviara, no último Natal, um exemplar de “O Código da Vinci” juntamente com uma carinhosa dedicatória. Marcos sentiu vontade de lhe escrever dizendo que não tinha tempo a perder com historinhas bobocas envolvendo a Igreja Católica, pesquisadores-detetives, Jesus, e outras tantas figuras quiméricas, mas capitulou assim que se lembrou da maneira afetuosa com que a moça se dirigira a ele: “Meu caro Professor Erótico, vate dos amores inconciliáveis... Pica doce! Lembranças da sua Besta Fera de Ribeirão Preto”. Enfim, ela conseguira amolecer seu coração, e, em vez de lhe escrever uma epístola malcriada, Marcos resolveu mandar-lhe flores e uma caixa de bombons com recheio de avelã. Ah, que seria de nós sem os clichês românticos! ... A Besta Fera -a primeira mulher com quem transara -, a mulher que o comeu sem perguntar se ele queria ou não, e que acabou por fazê-lo gozar dentro dela duas vezes seguidas. As fêmeas o haviam imolado desde a infância. Certa vez Lúcia, a prima cinco anos mais velha que ele, o obrigara a beijar-lhe as partes pudendas durante uma tarde inteira de inverno. O pobre ficou com cãibra nos lábios um bocado de tempo. Sim, elas haviam sido perversas com ele, e nem assim ele conseguia odiá-las. O fato de ter conhecido o corpo de outro homem em tenra idade nada tinha que ver com a histeria sexual das mulheres da família. Ainda garoto presenciara a mãe sentenciar à melhor amiga, numa conversa escusa: o ânus é a grande zona erógena a ser explorada. Sua mãe era uma mulher vivida – sabia das coisas. Enquanto o pai sempre fora um sujeito ensimesmado, cabisbaixo. Talvez por isso os dois tivessem formado um casal quase perfeito. Às vezes Marcos queria ser assim: sem mistério. Afinal a vida nada mais era do que o intervalo entre o sono e a vigília. Era um suspiro prolongado, ou um suspiro curto, tal qual havia sido a vida do sobrinho Daniel, que morrera duas horas depois de nascer. E durante tanto tempo Marcos ficara a conjeturar acerca dos momentos de descontração que ele e o sobrinho poderiam ter vivido, não fosse a criança ter fenecido horas depois de ter vindo ao mundo. E agora Marcos também feneceria. Um coração frágil. “Imprestável para o amor”, diria Paulo Mendes Campos. Era isso: a entrega. Nada mais do “prazer animal de existir”; nada mais de aventuras homoeróticas; nada mais de café nem cigarros; nada mais de porres etílicos e nem tampouco literários; nada mais de amores, nada dessa brincadeira de criança... Os prazeres da vida lhe haviam sido negados. Só lhe restara um corpo estranho a ele próprio. Um coração fraco.


* * *

Ao contrário do autor de “Morangos Mofados”, Marcos não encontrara sua verdadeira vocação quando dos seus últimos dias de vida. Continuava um desajeitado, um admirador do talento alheio. Caio se descobrira jardineiro, mas Marcos ainda mal conseguia cultivar um feijãozinho num copinho com algodão, como sempre é requerido às crianças da pré-escola. Em casa, o pai mantinha uma roseira e algumas samambaias. Marcos achava bonito, também queria arranjar uma distração dessa natureza. Gostaria de ser simples ao menos no fim da vida. Gostaria de viver como uma formiga operária. A colônia seria um aconchego, um útero para se morrer com tranqüilidade. Isso mesmo: gostaria de voltar ao útero materno, de onde às vezes desejava jamais ter saído.


3. Marcos e Camila

Vestindo jeans e camiseta surrada, e calçando sandálias de couro, o homem adentrou o elevador. Sub-repticiamente, ajeitou-se entre a moça com cheiro de algodão doce e um senhor franzino que usava chapéu de palha. Seus pés estavam úmidos devido aos respingos da chuva que havia pouco se precipitara sobre a cidade. A moça também tinha os cabelos molhados, blusinha amarela decotada, um jeito de quem está prestes a dizer alguma coisa. Tanto ela quanto o velho reagiram cortesmente ao sorriso do homem, que agora tentava se recordar do que havia esquecido de importante em casa. Quinto andar, o seu destino. O senhor de chapéu ficou no terceiro, deixando o casal com um ar abobalhado, dentro daquela caixa inóspita. E o quinto andar parecia ter desaparecido. Aonde iria a moça? Ambos estavam algo molhados, ambos mudos, cúmplices. Enquanto ele conferia os livros que trazia numa sacola de pano, ela espiou-lhe os cabelos levemente grisalhos – um charme, sem dúvida. O quinto andar despontara finalmente, e ela, num gesto incontido, deixou cair o prendedor de cabelo que trazia oculto numa das mãos. Então finalmente cruzaram os olhares, e ele se abaixou para apanhar o objeto colorido.

- Um gatinho!? Que simpático – disse ele, devolvendo o adorno à moça ruborizada.
- Eu ganhei de uma amiga. Você gosta de gatos?
- Adoro. Você estuda aqui?
- Isso. Faço pós-graduação. Sou professora de matemática
- Que ótimo! Então somos colegas. Eu leciono literatura.

Os dois trocaram várias impressões. Discutiram gostos comuns, idéias, desacertos. Abandonaram o elevador e foram caminhar pelo campus da universidade. Abriram mão de seus respectivos compromissos para se conhecerem melhor. As nuvens gordas de chuva haviam dado lugar a um céu vibrante, alaranjado. E, depois de mais de quarenta minutos de conversa, resolveram dar cabo de uma praxe que a magia do momento colocara de lado.

- Desculpe, mas eu não perguntei o seu nome.
- Meu nome é Eduardo. E o seu?
- O meu é Marília!

E então souberam que seriam felizes juntos, assim, para sempre.


Guaratinguetá, 16 a 27 de setembro de 2006.