terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Aviso de Chegada

A verdade é que Antônio tinha mãos bonitas. Talvez por isso Andréia tenha me trocado por ele. Não que minhas mãos sejam feias, não se trata disso. Mas as de Antônio eram realmente airosas, e ainda por cima lhe permitiam matar um homem adulto apenas com a sua envergadura, se ele assim o desejasse. Enquanto que as minhas remetem a uma escultura de cera, dada sua coloração alabastrina. E são finas e macias como convém a um gerente de banco sedentário.

- Quer dizer então que ela o trocou por Antônio só porque as mãos dele eram mais fortes e vistosas que as suas? – perguntou Zé Colméia, que acabara de tirar os sapatos e pousar os pés sobre a mesinha de centro, ao lado do pote de bombons.

- É quase isso. Mas há mais coisas envolvidas. Andréia não era tão fútil a ponto de me trocar por outro cara só porque as mãos dele lhe davam tesão. Eu poderia ter suprido essa tara de uma outra forma, e o rompimento não teria sido necessário. O resto eu te conto mais tarde. Já passa das onze e eu preciso dormir, que amanhã acordo cedo. Tenho que descansar porque amanhã é dia em que os aposentados vão ao banco receber. É um corre-corre tão grande que eu sempre volto pra casa com um dor de cabeça terrível.

- Sendo assim, amanhã eu não vou aparecer para te importunar. Se eu conseguir confirmar o que você me pediu, te mando um e-mail.

- Está bem. Pode ficar tranqüilo que assim que você me entregar as fotos eu te dou o dinheiro.

Zé Colméia calçou novamente os sapatos, pegou mais dois bombons no pote em cima da mesinha e os colocou no bolso da calça.

- Então até breve, Henrique.

- Até mais, Zé.

E saiu, deixando os embrulhos dos bombons que comera em cima do sofá.
* * *

No feriado de sete de setembro fui ao shopping me encontrar com uma amiga a quem não via há muito tempo. O lugar estava abarrotado de gente e eu cansei de esbarrar nas pessoas pelos corredores. Isso me deixou nervoso. Não gosto de multidões. Quando eu era garoto, me perdi de minha mãe numa grande loja de departamentos, e por pouco não passo a noite preso na seção de roupas femininas. Para minha sorte, um segurança que fazia a última ronda antes de fechar me encontrou dentro do trocador onde eu havia me refugiado. Chorei tanto ao reencontrar minha mãe. Foi o fim do Natal para mim. Mas, pensando bem, é possível que minha aversão a multidões não advenha disso. Trata-se de uma explicação muito primária, cara aos enredos policiais em que o detetive tem de superar suas limitações para salvar a vida da moça indefesa. Eu já vi esse filme.

Mas eu contava que ia me encontrar com uma antiga amiga, Luciene. Há uns doze anos, no colégio Santa Rita de Cássia, nós costumávamos jogar handebol no mesmo time. Ela era a melhor jogadora da equipe, goleiro algum conseguia agarrar seus torpedos de fora da área. Uma vez Luciene arremessou a bola com tal força em direção ao goleiro que o coitado teve de ser levado às pressas para a enfermaria. Depois disso ninguém mais quis jogar no gol contra o nosso time. Luciene ficou com essa pecha de carrasco, mas na intimidade não deixava transparecer nem de longe a truculência com que lançava as bolas ao gol.

Eu me lembrava disso e muito mais enquanto aguardava por ela sentado a uma mesa da minha lanchonete preferida do shopping, a única que servia cafés bebíveis naquele recinto. O fato de Luciene estar atrasada em quarenta minutos deixou-me irrequieto, e decidi ir à livraria no mesmo corredor da lanchonete, de onde eu poderia avistar a sua chegada.

Folheei alguns romances e livros de auto-ajuda só por gozação. Quando a vendedora se aproximava de mim para me abordar, eu ia para o outro lado da loja, me abaixava diante de alguma estante e fingia examinar a lombada de alguns títulos que me interessavam. Às vezes eu ficava com pena dela e lhe dirigia uma pergunta qualquer, à qual ela respondia prontamente. “Este está saindo por 39 e 90, senhor!”, “O senhor já leu o último do Paulo Coelho? Não? Está na promoção. Sai por apenas 29 e 90!” Certo, já basta. Não quero mais saber de preços. Quero saber de Luciene. Onde está ela? Se ela sabia que não poderia comparecer ao nosso encontro, por que me ligara de manhã cedo, dizendo que estava morrendo de saudades e que tinha muitas novidades a me relatar? Bem, isso só ela poderia me esclarecer. Mas eu não tinha a mínima idéia de onde ela poderia estar agora, uma vez que não me passara nenhum endereço ou telefone de contato, na certa porque não desejava mesmo ser encontrada; só dissera que precisava me ver, num tom entre saudosista e eufórico, que acabou por me deixar excitado.

Saí da livraria e estaquei diante duma vitrine repleta de manequins de plástico. Em criança essas criaturas sempre me fascinavam, instigavam minha imaginação. Quando acompanhava minha mãe às compras, eu sempre dava um jeito de me desvencilhar dela e me intrometer entre esses bonecos, para poder tocar seus pés, suas mãos, e os seios das fêmeas; se bem que falar em macho e fêmea em relação aos manequins soe um tanto estranho, de vez que se tratam de criaturas assexuadas, ainda que não raro elas despertem o desejo infantil de garotos tão imaginativos quanto eu já fui. Isso é o tipo de coisa que a gente não diz a ninguém. Talvez por pura falta de interesse. Mas acredito que se nós compartilhássemos confissões desse tipo com mais regularidade, o mundo seria um pouquinho melhor, ou então uma merda completa.

- Henrique!? – senti uma mão tocar o meu ombro.

Virei-me afoito, e para minha decepção dei com o rosto de um homem moreno, olhos e cabelos igualmente negros, estatura mediana.

- Que surpresa boa encontrar você aqui, rapaz! Lembra de mim? Túlio, o Zé Colméia! Faz mais de dez anos que a gente não se vê – e veio de encontro a mim para o abraço, do qual participei com indisfarçável acanhamento.

Tentei buscar lembranças daquele homem na minha memória, mas à minha cabeça só vinham imagens de Luciene lavando o rosto no bebedouro depois de uma longa e intensa partida de handebol.

- Você está mudado, cara. Eu quase não o reconheci – dizia, com um escancarado sorriso de contentamento.- Puxa, é incrível como a gente perde contato depois que termina a escola, não é? Você é um dos poucos colegas que eu reencontro há anos. Então, você tem visto o pessoal?

- Na verdade eu estava esperando por uma colega nossa, a Luciene. Você se lembra dela?

- Claro que lembro. Ela arrasava no handebol. Vocês dois namoraram, não foi? Eu me lembro que vocês não se desgrudavam, o pessoal comentava direto.

- Não, nós éramos apenas amigos. Bons amigos, de fato. Por isso o pessoal falava tanto de nós dois.

Ele usava calça jeans, camiseta preta e sapatos vinho. Os cabelos estavam hermeticamente penteados para trás, e com muito gel.

- Agora que a gente se encontrou, não podemos mais perder contato. Você tem e-mail, telefone? A gente podia combinar de sair junto qualquer dia desses. Você já foi ao Paradise? É uma boate incrível, chove mulher por lá. Você precisa conhecer!

- A gente pode combinar, sem dúvida.

- Beleza. Agora eu vou indo que não quero atrapalhar o seu encontro. A Luciene deve estar vindo aí. Um grande abraço, Henrique – estendeu a mão para me cumprimentar.

- Até mais, Túlio. Tudo de bom pra você.

Voltei à lanchonete e não encontrei Luciene. Um casal acabara de desocupar uma mesa, e resolvi me sentar para comer alguma coisa. Pedi um pedaço de torta de frango e um suco de caju. A atendente me lembrou alguém conhecido. Tinha peitos bonitos e um comprido rabo-de-cavalo. Acho que sorri para ela mais do que devia. Pedi um café, e mergulhei aquele tablete de chocolate na xícara. O gosto não era tão bom quanto eu havia suposto. Precisei acrescentar um pouco mais de açúcar para terminar de beber o café. A atendente por vezes parecia olhar para mim, mas acho que era objeto da minha imaginação. Cogitei de pedir outro café, mas desisti assim que vi a atendente entrar para a cozinha e não voltar mais. Ela me lembrava alguém muito especial. Ela me lembrava Andréia.

* * *

No dia em que Andréia me deixou, recebi uma correspondência que despertou minha atenção para um assunto que eu até já esquecera de tão ultrapassado. Dizia respeito à herança que minha falecida mãe me havia legado; nada muito vultoso, apenas uma casa modesta num bairro de classe média de São Paulo e algumas jóias de família. Mas como eu não possuía irmãos ou qualquer outro parente próximo com quem tivesse de dividir tais bens, eles me seriam de grande valia. Eu pensava em investir na minha educação, fazer um curso de jornalismo talvez, ou então tentar abrir meu próprio negócio. Havia algum tempo eu pensava na possibilidade de abrir um bar estilo pub na cidade onde nascera, no interior do estado, visto que na região havia poucos estabelecimentos semelhantes a esse, e nenhum completamente igual. Me atraía o charme dos extensos balcões de alumínio onde qualquer pessoa pudesse se acomodar e puxar papo com os demais convivas. Na verdade o impulso inicial partira dos filmes americanos em que homens e mulheres solitários chegavam a esses bares, pediam bebidas, e quase sempre terminavam a noite em companhia de pessoas interessantes, que mudavam suas vidas definitivamente, para o bem ou para o mal.

Todas essas possibilidades seriam estudadas com cuidado mais tarde. Primeiro eu precisava conferir a tal carta intitulada Aviso de Chegada. Eu teria que comparecer a uma repartição pública para retirar alguns documentos relativos aos trâmites do processo de recebimento da herança, ou algo que o valha. Foi isso o que o advogado que cuidava do caso me explicou por alto. A bem da verdade, eu não me mostrava deveras interessado no assunto. Andréia havia ido embora e levado consigo boa parte do meu entusiasmo; agora eu andava por aí feito um espantalho, desprovido de ânimo e de sonhos.

Diariamente eu saía do banco por volta das cinco da tarde e ia caminhando pra casa. Depois que minha bicicleta havia sido roubada no estacionamento de um supermercado, perdi completamente o gosto pelo ciclismo, que outrora me provera tanta satisfação. Eu sabia que estava cometendo um erro ao sucumbir diante da ação dos ladrões. O correto seria comprar outra bicicleta e seguir minha vida com um pouco mais de cuidado dessa vez. Era exatamente o que eu precisava fazer em relação à Andréia. Se ela escolhera viver com outro homem, azar o dela. Se ela achara melhor ter filhos com outro homem, que fosse pro inferno. Não havia sido eu quem a expulsara de casa, ela se fora por vontade própria. Eu não tinha mais nada a ver com a vida dela; com quem ela dividia a cama, agora, pouco me importava. Contanto que não me pedisse para perdoá-la, ou para pedir perdão, o que seria ainda mais descabido...

- Então Luciene não apareceu mesmo! – exclamou Túlio, acomodando-se na banqueta do telefone.

Uma semana após nosso encontro no shopping Túlio apareceu em casa de repente, numa quinta-feira à noite. Chegou dizendo que tínhamos muito que conversar, e antes que eu pudesse lhe perguntar de que modo havia conseguido meu endereço, ele se colocou porta adentro e pediu algo para beber.

- Você não se incomoda de eu usar o telefone? Eu juro que é rápido. Preciso dar um recado pra minha irmã.

Faria diferença se eu dissesse que me incomodava?

- Pronto. Agora me fala mais sobre você. Quer dizer que a Luciene te deu um bolo. É, meu caro, você tá mal de namorada.

-Eu já disse que ela não é minha namorada. Não estou namorando ninguém. Eu estava, mas acabou há pouco tempo.

Zé Colméia deambulava pelo apartamento, observando de perto cada móvel e objeto de decoração.

- Acabou, é? Durou quanto tempo?

- Pouco mais de dois anos. Andréia, o nome dela. Nos conhecemos numa festa que um amigo nosso organiza a cada dois meses. É uma reunião amistosa onde amigos e conhecidos batem papo, bebem, fazem planos pro futuro, essas coisas. Funciona assim: cada participante antigo pode levar um conhecido à festa, e deste modo o apartamento fica menor a cada edição do evento. Eu fui introduzido no grupo por um amigo que infelizmente morreu ano passado, num acidente de carro. Com Andréia ocorreu o mesmo: uma amiga a levou à festa. E foi assim que nos conhecemos. Trocamos telefone, no dia seguinte ela me ligou, e marcamos uma viagem para Trindade. Lá nos apaixonamos, e decidimos morar juntos. Ela veio pra minha casa. Trouxe suas roupas, seus livros, seus perfumes, suas plantas, suas quinquilharias. Foi ótimo. Nunca fui tão feliz em toda minha vida. Eu saía para trabalhar e ela ficava em casa, ajeitando as coisas, cozinhando pra nós, ouvindo música... Às vezes ela ia me esperar na porta do banco, e saíamos para tomar um chope. Nos feriados íamos pro litoral, Andréia se bronzeava toda. Eu enlouquecia com as marcas do biquíni.

Zé Colméia enfiou a mão no pote de bombons e escolheu um demoradamente, depois o desembrulhou e o levou à boca com vagar.

- Nós continuamos a ir a tal festa do nosso amigo, mas nunca levamos ninguém conosco. O apartamento já estava lotado demais, era o que achávamos.

- E você continua a ir a essa festa?- perguntou Zé Colméia, espreguiçando-se no sofá.

- À última eu não fui. Fiquei com medo de encontrar Andréia por lá, acompanhada de Antônio. Eu não saberia como agir. Acho que enfiaria a mão na cara dele, caso ele a beijasse na minha frente. Não sou tão civilizado assim.

- Mas e esse tal de Antônio? Como foi que ele surgiu na história de vocês?

* * *
Para minha surpresa Luciene me adicionou no Orkut três dias depois de ter me deixado esperando plantado na praça de alimentação do shopping, sem qualquer consolo ou satisfação. Anexou também ao seu álbum virtual algumas fotografias de nossa adolescência interiorana. A foto do nosso beijo na quermesse do bairro, que eu acreditava estar em seu poder, não foi adicionada com as demais. Mas eu não a reclamei. Não queria dar sinais de que não me havia aborrecido com o fora que ela me dera. Por isso não respondi às mensagens que me escreveu, todas belamente redigidas e ornadas por coraçõezinhos e querubins chorões – que a despeito do encanto que me suscitaram, não me fizeram render aos apelos da autora.

Não compareci ao segundo encontro proposto por Luciene. Preferi ficar em casa relendo antigos cartões de datas comemorativas. Alguns continham a letra miúda e arredondada de Andréia. Sua escrita era sensual, dava vontade de reler sem parar. Com poucas palavras ela compunha uma mensagem capaz de sobreviver ao tempo, sem que para isso demonstrasse ter dispensado o menor esforço. Acho que ela poderia ter sido uma boa escritora se quisesse, não obstante fosse muito preguiçosa. Às vezes tinha preguiça até de fazer amor. Principalmente no verão. E quando isso acontecia, eu sempre me lembrava de uma personagem de Spike Lee, no filme “Faça a Coisa Certa”, que hesitava em ir para a cama com o namorado em razão do calor insuportável que fazia em Nova Yorque. Mas quando Andréia se mostrava inteiramente disposta, nosso amor chegava aos píncaros, e incomodava aos vizinhos. Dona Filomena, a viúva que dividia o apartamento com um casal de poodles, de vez em quando dava pequenas batidas na parede com sua bengala, no intuito de chamar nossa atenção para o escândalo que estávamos fazendo. Certa vez ela até ameaçara de se reportar ao síndico, caso as nossas orgias noturnas não cessassem. E no entanto ela foi a primeira a dar pela ausência de Andréia, deis dias após ela ter me deixado. A simpática senhora bateu à minha porta num domingo de manhã, quando eu me encontrava em estado lastimável no sofá da sala. Não fazia a barba havia uma semana, as unhas estavam a ponto de se encurvar, e o hálito agredia qualquer um que estivesse a menos de três metros de mim. Mas fiz o possível para ser gentil com ela, que afinal demonstrava preocupação para com o vizinho de lado, o que é muito raro hoje em dia. Normalmente as pessoas morrem trancadas dentro de casa sem que ninguém dê pela sua falta. Eu cheguei a temer tal situação quando passei a morar sozinho em São Paulo. O que para muitos seria motivo de felicidade plena, para mim se apresentava como uma possível ameaça.

Eu exigia de mim mesmo o máximo de atividade possível. Andava de um cômodo a outro, aguava as plantas, ligava o som no volume máximo, me exercitava no chão da sala, às vezes de madrugada, nu em pêlo. A qualquer minuto Andréia entraria pela porta carregando suas malas, e eu a abraçaria com força para nunca mais deixá-la partir. Se ela desejasse adotar uma criança, eu não me oporia; se quisesse animais de estimação, eu os buscaria para ela; se desejasse uma aventura sexual qualquer - coisa de uma noite, para em breve se perder na memória -, eu mergulharia de cabeça com ela. Eu faria suas vontades, desde que ela esquecesse Antônio de uma vez por todas. Bastaria entrar por aquela porta que seríamos um casal novamente. Mas a realidade é que apenas uma pessoa me freqüentava ultimamente: Túlio. E por mais que eu desse sinais de que sua constante presença em meu apartamento me aborrecia, ele ignorava tudo cinicamente, emendando um assunto no outro sem me dar chance de apor novos pontos de vista. Na verdade eu precisava colocar um termo nisso o mais rápido possível, do contrário acabaria por me envolver de tal maneira nos devaneios de Túlio, que ao final de tudo eu não saberia bem quem eu era e nem tampouco que já havia sido alguém um dia.

- Eu não quero que você fique constrangido com isso tudo. Se for desconfortável falar sobre isso, por favor não o faça – dizia Zé Colméia, folheando uma revista que apanhara no cesto ao lado da mesinha do telefone.

- Na verdade me sinto melhor agora. Eu não tenho conversado com muita gente, sabe? - eu dissimulava. – Às vezes compartilhar detalhes do nosso relacionamento com outra pessoa me aproxima de Andréia de certa maneira. Não sei se ela costuma fazer o mesmo; acho que não, pois parece viver bem com Antônio; e também não sei se ela aprovaria minha atitude. Também pouco importa. A dor-de-cotovelo é minha e eu faço dela o que bem entender.

- É difícil, para mim, entender por que vocês se separaram, se pelo que você diz, na intimidade a relação era tão gostosa. Eu tenho que confessar que nunca tive um relacionamento tão intenso quanto o que você está me relatando. Aposto que você se lembra de cada detalhe, de cada cheiro, de cada sabor. Afinal de contas, dizem que é por meio das pequenas coisas que um casamento se perfaz. Não que eu entenda muito de casamentos, longe disso, mas conheço bastante sobre casais, suas alegrias e suas dificuldades. Nós vivemos cercados por casais felizes e infelizes desde o início da vida. Meus pais, por exemplo, eram muito infelizes. Meu pai traía minha mãe o tempo todo. E ela sempre se fez de desentendida. Acho que por medo de não ter como se sustentar, caso se separasse dele. Sempre achei essa situação muito angustiante. Imagina: estar preso assim a um relacionamento, sem perspectivas de se libertar. Ela devia se sentir muito sufocada. Não sei como sobreviveu até a morte de meu pai, e ainda se manteve saudável por tantos anos, mesmo sem ter se relacionado com mais ninguém. Nunca perguntei a ela se havia se apaixonado por outra pessoa, depois que meu pai morreu. Tive medo, vergonha, sei lá. Preferi pensar que ela estava feliz, já que havia se livrado do homem que a maltratara tanto. Às vezes é melhor deixar que as coisas caminhem por conta própria, ou pelo menos é assim que encaro os problemas para os quais não tenho uma solução imediata. Não sei se com você ocorre o mesmo... Se eu me casar um dia... Não faço planos, prefiro deixar acontecer. Mas seu vier a me casar um dia...

O telefone tocou. Era como se Deus tivesse ouvido as minhas preces, ainda que eu o houvesse negligenciado desde sempre.

Reconheci a voz do outro lado da linha de imediato: Andréia. Parecia estar gripada, ou então que havia acabado de chorar muito. Disse que precisava pegar algumas roupas que de fato esquecera no meu apartamento. Assenti. Era só combinarmos um horário. Ficou em silêncio por alguns instantes, e em seguida disse que achava melhor mandar alguém pegar as roupas para ela. Tive vontade de pedir que viesse pessoalmente, mas só então percebi que não era tão fácil me rebaixar de verdade como o era nas tardes insones que eu passava malhando no chão da sala, nu, às vezes deixando-me levar por antigos momentos de prazer a dois, e acabando por me masturbar da maneira mais juvenil, manchando o tapete, as almofadas de veludo que guarneciam o sofá maior, as plantas da varanda, os móveis, os eletrodomésticos, e tudo o mais que encontrava pela frente durante essa minha masturbação errante.

Por fim concordei em receber a tal amiga de Andréia. Chamava-se Letícia, e viria no domingo à tarde.
* * *
No dia seguinte ao telefonema de Andréia, compareci ao fórum para a retirada dos documentos relativos à herança de minha mãe. O moço que me atendeu era alto e robusto, usava um cavanhaque que lhe conferia um ar despojado, conquanto suas roupas estivessem de acordo com o ambiente burocrático da repartição. Enquanto ele remexia em algumas pastas de papelão, eu fiquei a observar a diligência dos demais funcionários. Um homenzinho atarracado ajeitava alguns processos em várias pilhas ao fundo da saleta em que nos encontrávamos, ao passo que uma mulher trajando um vestido azul de veraneio datilografava ruidosamente a uma máquina cinza, a qual eu me lembrava de ter utilizado muitos anos atrás no banco.

- Assine aqui, aqui, e aqui, por favor – instruiu-me o funcionário do cavanhaque.

Dei uma lida rápida e ato contínuo assinei nos lugares indicados.

- O senhor precisa voltar ao fórum no dia 20 de novembro, acompanhado do seu advogado, para... – ele me passou todas as informações.

Quase perguntei a ele quando era que eu iria colocar a mão no dinheiro, mas desisti com medo de que ele encarasse a pergunta como um ato hostil de minha parte. Afinal, ele até que me tratara com deferência. Apesar de toda a procrastinação arrastada, ele só estava cumprindo com o seu dever. Não era sobre ele que eu deveria soltar os meus cachorros; aliás, eu não tinha idéia de quem deveria pagar por aquilo.

Na parte da tarde voltei ao banco para colocar algumas pendências em dia, mas não consegui retirar da cabeça a voz trêmula de Andréia ao telefone. Todas as moças a quem eu atendia se pareciam com ela. Cheguei mesmo a pensar que emprestara dinheiro a ela dezenas de vezes. Era como se eu houvesse dito sim a ela amiúde, e isso me deu uma certa alegria. Seu corpo se formava em minha memória a partir de fragmentos das mulheres às quais eu havia atendido. O rosto rotundo e expressivo de uma se aliava ao torso curvilíneo de outra, que, por sua vez, se encaixava aos membros firmes e graciosos de uma terceira, dando à figura feminina uma feição idealizada e artificial. Na verdade isso só ocorria porque a verdadeira imagem de Andréia se havia perdido na minha memória. Mas o que mais me angustiava não era isso, e sim o fato de com a figura de Antônio não ter sucedido o mesmo.

Eu me lembrava com detalhes do homem que, numa tarde de quarta-feira, encontrei aos beijos com Andréia no cinema. Na ocasião, saí um pouco mais cedo do banco que o costume, uma vez que não possuía muita carga de trabalho, e resolvi conferir a programação do cinema pela internet. O filme ao qual havia tempos eu desejava assistir entrara finalmente em cartaz, então resolvi aproveitar o tempo livre para ir vê-lo. Não convidei Andréia porque sabia da sua pouca paciência para longas-metragens; ela sempre dormia antes da metade do filme, e eu sempre acabava por me aborrecer com ela, que não tinha a menor consideração pelos títulos que eu escolhia com todo o cuidado na locadora.

Antes de entrar para a sessão das 16 e 30, resolvi tomar um café na minha lanchonete preferida do shopping. Pedi alguns pães de queijo, muito ruins por sinal – o forte da lanchonete era mesmo o café. Comprei também algumas balas de canela, as quais pretendia chupar durante o filme. Depois fui direto para o cinema, pois não queria perder sequer os trailers. Era um costume que cultivava desde moleque: nunca entrava para a sala após o início da exibição. Caso isso ocorresse, dava meia volta e só retornava ao cinema num outro dia, ou então esperava o filme ser lançado em DVD.

Nesse dia, porém, aconteceu de eu entrar atrasado para a sessão, em razão da dor de barriga provocada pelos pãezinhos de queijo. Mas, ao invés de dar meia volta, resolvi permanecer na sala, já que não havia perdido muito do filme, apenas dois ou três minutos que não comprometeriam o meu entendimento da trama.

Sentei-me no meio da terceira fileira contando de baixo pra cima. Havia pouco mais de dez pessoas no local. Na tela, dois rapazes conversavam sobre suas aventuras sexuais. Quando um deles fez menção à maneira como havia feito sexo oral na namorada, gritinhos irromperam do fundo da sala. Olhei discretamente para trás e vi que se tratava de um grupo de adolescentes que decerto matavam aula. Jurei pra mim mesmo que, se as intervenções voltassem a se repetir, eu iria até lá e os expulsaria da sala. Mas na realidade eu sabia que não tinha poderes para tanto. Coloquei uma bala de canela na boca e concentrei-me no filme, que me agradava apesar do tom forçado de algumas passagens. Foi então que uma mulher desceu lentamente o corredor à minha direita, e eu percebi que não era outra pessoa senão Andréia. Minha reação foi a de não me mover, para que ela não me descobrisse, embora caminhasse displicentemente. Vestia uma roupa à qual eu nunca vira antes, e os cabelos estavam soltos, apesar do verão. Quando retornou, pude sentir o seu perfume característico, e dessa vez me abaixei na poltrona para não ser reconhecido. Depois que passou por mim, segui-a com o olhar até o lugar onde se sentou, ao lado de um sujeito um pouco mais alto do que eu, braços e pernas compridos, ombros largos, cabelos claros. Eu não precisava ver mais nada, mas ainda assim a vi abraçar-se àquele homem, beijá-lo longamente, ignorando o filme por um outro motivo que não o de ter pouca paciência para acompanhá-lo até o fim.

Saí do cinema imediatamente, passando muito mal. Do lado de fora, uma funcionária perguntou se estava tudo bem comigo, e respondi que só me sentia um pouco indisposto. Aí fui ao banheiro, lavei o rosto, e depois caminhei na direção de casa. No meio do caminho, resolvi ir para outro lugar. Tomei um táxi e fui para um bar onde um amigo me levara certa vez. Um ambiente muito gostoso, música ao vivo e suave, um grande balcão onde qualquer um podia se acomodar e beber o que quiser sem ser importunado. Eu afogava minhas mágoas de um modo quase patético, era um mau bebedor e não sabia ao certo o que se devia beber numa situação dessas. Pedi ajuda ao barman, que me recomendou um coquetel de vodca qualquer. Tomei uns oito desses, paguei a conta e fui dar uma caminhada pelas ruas do bairro. Eu sabia que aquela região era um reduto de intelectuais, e fui parando em alguns botecos e inferninhos onde se bebia muito e se tocava os mais diversos tipos de música; até num sarau fui parar. Uma menina loira me fez beber um pouco de tequila, e depois insistiu para que eu declamasse diante de todos um poema de Roberto Piva, mas consegui dissuadi-la da idéia a tempo de evitar o vexame.

- Mas você não voltou pra casa nesse dia? – perguntou Zé Colméia.

- Não. Dormi no apartamento que a menina loira dividia com mais três colegas. Elas eram candidatas a top-models fracassadas, que sobreviviam em São Paulo fazendo pequenos trabalhos como modelo, recepcionistas de eventos, animadoras de festas infantis, essas coisas.

- Você transou com ela?

- Não tenho certeza. Eu estava muito bêbado. Fui vomitando o caminho todo entre o barzinho onde a encontrara e o seu apartamento. As outras meninas não estavam lá, por isso eu pude ficar sem problemas. No dia seguinte fui de lá direto para o banco. Ela me deu seu telefone, e eu fiquei de ligar assim que resolvesse meus problemas com Andréia.

- Puxa, que incrível! Quem dera minha vida você tão agitada quanto a sua. Eu vivo à caça de aventuras, mas sempre acabo encolhido em um canto qualquer, me lamentando por aquilo que não fiz – Túlio acrescentou com um perceptível tom de pesar.

Era madrugada de sábado, e na tarde de domingo Letícia, a amiga de Andréia, viria ao apartamento apanhar as roupas que minha ex havia esquecido, e as quais eu já ajeitara numa sacola de fibra de bambu, que também era dela. Túlio estava comigo desde o início da tarde. Chegara portando duas caixas de cerveja em lata e um pacote de amendoim japonês. Eu estava conectado à Internet, visitando alguns blogs que colegas do banco me haviam recomendado, e dando uma lida no noticiário do dia. Havia conferido que Luciene me enviara um convite para integrar a comunidade da Turma de 86 do Colégio Santa Rita de Cássia, no Orkut. Dei uma espiada só por curiosidade, encontrei outros tantos amigos que andavam sumidos, até uma garota magricela que não falava com ninguém. Era incrível: no Orkut todos se mostravam. Até os que sequer abriam a boca na escola faziam comentários, integravam comunidades, sérias e gozadas, publicavam suas melhores fotos... Era do caralho! De repente todos conviviam em pé de igualdade, guardadas as diferenças no número de amigos de cada um.

- Esse dia Andréia foi me esperar na saída do banco. Disse que ficara muito preocupada comigo, que ligara para a polícia, e que saíra à minha procura pela cidade toda. Me abraçou forte e pôs-se a chorar no meu ombro. Eu, molenga que sou, quase lhe pedi desculpas. Mas mantive-me firme. Em casa contei a ela o porquê de eu ter passado a noite fora. Foi um choque grande para ela, pude perceber pela maneira que fincava os dedos longos e finos em sua cabeleira revolta. Pôs-se de joelhos, disse que queria morrer, que não era para as coisas terminarem daquela maneira. Ameaçou se jogar pela janela. E depois que se acalmou, pedi que me contasse como conhecera Antônio. (Túlio ouvia tudo atentamente, enquanto tomava a última latinha de cerveja que trouxera.) Ela relutou, não queria tocar no assunto, mas eu disse que precisava saber: era um direito meu. Então ela contou que ele trabalhava como gerente de vendas numa loja de móveis no centro da cidade, e que sempre cruzava com ele quando ia me esperar à porta do banco. O porte atlético era resultado da carreira de jogador de voleibol que ele abandonara havia alguns anos, e das partidas que continuava a jogar nos finais de semana. A iniciativa partira dele; ela só se deixara vencer pelo cansaço. Vencida pelo cansaço... Imagine.

Esperei por um longo comentário de Túlio mas ele não veio. Meu interlocutor desmaiara no sofá à minha frente, coberto de restos de amendoim e latas de cerveja. Fiquei sem jeito de acordá-lo, então fui ao quarto e apanhei um lençol para cobri-lo. Ele ressonava como um bebê, os braços estirados rente ao corpo, os pés pendiam da extremidade do sofá. Eu invejava sua facilidade de pegar no sono. Mesmo sob efeito do álcool, tinha dificuldades para adormecer. Mil coisas passavam pela minha cabeça – eu não conseguia me livrar do entulho que me saturava a memória. E mesmo padecendo desse mal desde garoto, ainda não me acostumara. O jeito era imaginar que nunca sofrera de insônia, que nunca me sentira só na cidade grande, que nunca fora traído ou desdenhado por velhos amigos... Era deitar na cama e morrer, para no dia seguinte renascer com mais força.
* * *
Acordei com uma réstia de luz solar que me abrasava a parte esquerda do rosto. Alguns pombos se atracavam no parapeito da sacada; acho que disputavam uma fêmea; seu arrulhar também contribuíra para que eu despertasse. Tive vontade de assassiná-los. Era cedo demais, e eu não tinha nada para fazer. Lembrei-me que Zé Colméia estava dormindo na sala. Vesti um short e fui até lá. Corri os olhos pelo cômodo mas não o encontrei. Acho que ficara com vergonha de me acordar e resolvera sair à francesa.

Coloquei um cedê do Lenine para tocar e fui tomar banho. Eu pretendia dar uma volta antes do almoço para espairecer. Compraria um frango-assado na padaria a três quarteirões do meu prédio. Eu comia esse frango todo domingo. Poderia pedir que o entregassem se quisesse, mas preferia o pretexto para fazer uma caminhada. À tarde a amiga de Andréia viria, e eu precisava estar em casa. Não haveria problemas. Seria coisa de minutos, e mais tarde eu daria um jeito de matar o domingo.

Após o almoço, peguei no sono e acordei com o som da campainha. Pulei do sofá e corri ao banheiro para lavar o rosto. Depois fui até a porta e olhei pelo olho mágico: era uma moça loira, baixinha, e de cabelos curtos.

Abri a porta.

- Oi! Eu sou Letícia, amiga da Andréia. Ela me pediu pra pegar as roupas dela aqui – disse sorrindo.

- Eu estou sabendo. Entra, por favor.

- Licença.

Entrou e postou-se ao lado do sofá menor. Vestia um bustiê cor-de-rosa e uma saia jeans. Senti de pronto seu perfume adocicado misturado ao cheiro de cigarro. Era até agradável.

- Eu posso usar o seu banheiro para fazer um xixi? – perguntou-me sem jeito, dando a ver suas belas covinhas do rosto.

- Claro. Seguindo esse corredor, é a segunda à direita. Fique à vontade.

Assim que ela entrou no banheiro, fui até a varanda e olhei para a entrada do prédio. Como eu havia imaginado, Andréia a estava esperando. O estranho era que estava acompanhada de um sujeito a quem eu nunca tinha visto. Não era Antônio. Era um homem moreno, um metro e setenta, mais ou menos, algo musculoso, um corte de cabelo militar. Estavam encostados em um conversível vermelho; ela de costas, aninhada no corpo dele. Ele mexia nos cabelos dela e lhe falava à orelha. Uma mão descia pela perna dela e lhe alisava a coxa. Eu mordi meu lábio inferior até sentir gosto de sangue.

Letícia voltou do banheiro e me surpreendeu chorando.

- O que aconteceu? Eu posso te ajudar?- perguntou, encabulada.

- Nada. Só uma dor de cabeça forte. Logo passa.

Fui ao meu quarto e peguei a sacola com as roupas de Andréia. Elas ainda recendiam ao perfume da dona. No caminho de volta à sala chorei um pouco mais. Meus olhos ardiam de ódio. Eu devia estar horrível pelo jeito com que ela me olhou. Entreguei-lhe a sacola. Ela disse que estava pesada, mas não ofereci ajuda. Acompanhei-a até a porta e disse até-logo.

- Você quer que eu diga alguma coisa a Andréia? – perguntou, baixando o rosto em seguida.

- Não. Não precisa dizer nada.

Ela caminhou graciosamente até o fim do corredor. Linda, tinha o mundo entre as pernas.

* * *
Na segunda-feira faltei ao trabalho. Só me levantei da cama para ir ao banheiro. Fechara todas as janelas para perder a noção de quando o dia terminava e a noite tinha início. Minha cabeça latejava, e eu não sentia fome. Estranhei o fato de o telefone não ter tocado sequer uma vez. Será que ninguém se importava com o meu bem-estar? Acho que tanto fazia se eu estava vivo ou morto. Apenas Túlio tocando a campainha para me alertar de que aquilo que chamamos de vida continuava.

Hesitei um pouco antes de abrir-lhe a porta. Ele me disse que eu estava horrível. Uma perda de tempo. Notei que usava um brinco de argola no topo da orelha direita. A nova moda entre os gays, pensei. Será que dava a bunda também? Não valia a pena levar esse assunto adiante. Pedi um tempo para tomar um banho. Disse-lhe que ficasse à vontade – outra perda de tempo. Era como se o apartamento fosse dele e eu morasse de favor.

Após o banho, comemos o que sobrara do frango-assado dominical. Túlio pediu para abrir um vinho branco antiguíssimo que eu ganhara de minha mãe. Concordei. Tinha um gosto muito bom. Se eu soubesse disso, já o teria bebido antes.

- Andréia esteve aqui na frente do prédio ontem, junto com um cara estranho, que eu não conhecia – puxei assunto. Agora a presença de Zé Colméia me aprazia.

- Você acha que ela está traindo o Antônio com esse cara?

- Tenho certeza. Ela estava agarrada com o sujeito, encostada num carro vermelho. A não ser que Antônio seja um corno condescendente, está sendo traído com um tipo do exército. Percebi pelo corte de cabelo.

- Você quer saber o que eu acho? Pois eu acho que já passou da hora de você esquecer a Andréia. Por melhor que tenha sido a relação de vocês, acabou. Não há mais o que fazer. Agora é partir pra outra.

- É o que eu digo pra mim mesmo todos os dias. Mas não é tão fácil tirar Andréia da minha vida. Eu já tentei esquecê-la aos poucos, e não obtive sucesso; já tentei arrancá-la da minha cabeça de uma só vez, e acabei me impregnando dela ainda mais. É como você já disse: cada cheiro, cada toque, cada sabor. Eu me lembro das pequenas coisas. O cheiro bom de xampu que ficava no seu travesseiro; as calcinhas penduradas na parede do box; a curvatura dos mamilos; algumas sardas ao redor do pescoço... O hálito doce que me inebriava... E quando cantarolava uma canção de Adriana Calcanhoto no banho. Ah, o banho... Retirar os pentelhos de Andréia do sabonete era um divertimento.

Túlio apanhou dois bombons no pote sobre a mesinha de centro.

- E tudo terminado daquela maneira, na sala de cinema. Depois, quando eu os vi juntos pela segunda vez, reparei que Antônio era um sujeito muito distinto. E tive vontade de matá-lo. Tive vontade de matá-lo porque ele era mais alto do que eu, porque tinha compleição atlética... A verdade é que suas mãos eram grandes e bonitas. Andréia devia se sentir protegida. Acho que é isso mesmo. Agora, no entanto, ela o está traindo com um militar. E ele vai sofrer tanto quanto eu sofri.

Foi então que pedi a Túlio que investigasse Andréia, para ter certeza se ela estava ou não traindo Antônio. Uma curiosidade mórbida se apoderara de minha mente, e eu só conseguiria dormir de novo depois de sanada essa dúvida. De início, ele mostrou-se contrário à idéia, mas depois acabou por concordar, e por se disponibilizar a tirar algumas fotografias da adúltera ao lado do amante. E eu me comprometi a pagar pelas fotos.

* * *
Algum tempo depois voltei ao fórum acompanhado do meu advogado, e o que eu mais temia aconteceu. O processo de recebimento da herança havia sido indeferido. Tive um surto de fúria dentro da repartição, e fui escoltado até a saída por dois seguranças gigantescos. Eu me debatia como uma criança birrenta. Chorava de indignação. Como me negavam a herança, se ela me fora legada por minha mãe legítima? Era incompreensível. E o advogado que não conseguia interceder a meu favor? Será que estava mancomunado com alguém para me prejudicar? Era demais pra mim. Parecia que eles me abriam um ferimento à faca - extirpavam meus sonhos.

Vaguei pelas ruas como um pobre-diabo. Minha necessidade de falar com alguém era premente, mas nem mesmo Túlio dava as caras. Todos se haviam refugiado em seus próprios castelos. A vida na metrópole era assim mesmo: cada um por si. Pensei em voltar ao bar do extenso balcão de alumínio, onde poderia disfarçar minha solidão à vontade, e também extinguir de vez o sonho de abrir meu próprio pub no interior do estado. Os solitários de lá que esperassem por um novo redentor. Só me restara mesquinharia na alma. Eu iria pegar as fotos que Túlio tiraria de Andréia com o amante e entregá-las a Antônio, para que ele também sofresse.

Cheguei em casa e encontrei um bilhete de dona Filomena pregado à porta com fita adesiva: Andréia esteve aqui hoje à tarde. Precisa falar com você urgente. Me pediu para dar o recado.

Assim que terminei de ler o bilhete, Túlio apareceu. Perguntei-lhe se havia tirado as fotos, mas ele não respondeu. Entramos no apartamento. Fui até a cozinha e pequei duas latas de cerveja. Ele sentou no sofá menor, a cabeça baixa. Seu silêncio me irritava profundamente. Eu quis pegá-lo pelos ombros e sacudi-lo com força para que dissesse tudo de uma vez. Mas ele mantinha a cabeça baixa.

- Fala logo, porra! – explodi.

Engoliu em seco.

- Eu segui o itinerário que você me indicou mas não encontrei Andréia. Perguntei por ela aos vizinhos mas ninguém a conhecia. Eles nunca ouviram falar de Andréia nenhuma.

- Como assim? Você deve ter ido ao bairro errado. Eu te dei o papel com o endereço dela, os lugares que ela costuma freqüentar... Como você não a achou?

- Sinto muito, Henrique. Mas eu não encontrei nem sinal dela nem do amante. E se você quer saber, nem Antônio eu encontrei. Fui até a loja onde ele supostamente trabalha, só para saciar a minha curiosidade de conhecê-lo, mas ele não estava lá.

Coloquei a latinha de cerveja sobre a televisão. Eu não me sentia bem. Ou Zé Colméia estava louco, ou estava conluiado com Andréia. Era possível que ela o houvesse pagado para que ele não mostrasse as fotos a Antônio. Isso. Era bem possível. Andréia era ferina.

- Eu preciso ir embora, Henrique. Tenho outras coisas a fazer. Tchau! A gente se fala outra hora – levantou-se pressuroso e saiu sem dizer mais nada.

Então era isso: todos estavam conluiados. Todos juntos para me foder. Túlio, Andréia, Antônio, Luciene, o Advogado... Me apunhalavam pelas costas. Mas eu precisava tirar toda a história a limpo. Andréia tinha vindo ao apartamento, queria me dizer algo importante. Dona Filomena conversara com ela, podia me dar mais detalhes. Isso mesmo. Falar com dona Filomena.

Bati à porta da velha. Passava pouco das nove e ela devia estar assistindo à novela. Como ela não atendesse, bati novamente – agora com mais força. Por que os malditos cachorros não latiam para alertar a dona? Eu batia na porta como um babaca, os outros vizinhos começavam a reclamar do barulho. Mas eu precisava falar com dona Filomena. Por que não me atendia? Então só tinha ouvidos para o que lhe interessava? Para as minhas noites de amor com Andréia tinha ouvidos, e agora nada! Estava dormindo, tão cedo assim? Bati ainda mais forte, com o nó dos dedos. Um homem gordo, sem camisa, e de chinelos saiu no corredor. Dirigiu-me um palavrão qualquer, que ignorei. Dona Filomena não dava sinais de vida, os poodles não latiam. Uma mulher, o rosto coberto por um creme verde, também saiu no corredor. Abriu os braços, indignada, mandou-me à merda. Mas será que ninguém percebia que havia algo de errado? Eu batia com mais força, e dona Filomena não respondia. Meu Deus! Eles me insultavam, mas não viam que a velha podia estar morta dentro do apartamento. Logo começaria a feder! As pessoas morrem trancadas em casa e ninguém dá pela sua falta...


Guaratinguetá, 20 a 30 de novembro de 2006.

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