quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Incursão Diurna ao Centro da Cidade Monstro

“Nós buscamos outras realidades porque não sabemos como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos pelo desejo de saber como é o nosso interior.”

Montaigne

"A tragédia é o estado natural do homem."

Lúcio Cardoso
Blade Runner sabe que precisa chegar ao topo da torre antes do início da tempestade – que, de acordo com o boletim meteorológico que consultara pela manhã, seria uma das mais mortíferas em décadas. Sua missão naquela tarde: exterminar o Grande Recrutador. Antes de deixar seu Q.G. particular, pouco depois da primeira revoada de vampiros do dia, Blade passou em revista seu arsenal de armamentos extremamente letal: o legado do pai finalmente começava a se mostrar de grande valia. O traje era o mesmo de sempre. Calça preta de sarja, camiseta branca e jaqueta cinza escuro.Vestiu um colete repleto de escaninhos em que esconder os armamentos por baixo da jaqueta. Óculos também escuros; gel no cabelo. Indispensável mascar um chiclete de hortelã sem açúcar até sobrevir uma leve sensação de desconforto estomacal. Apesar dos óculos, os olhos ardiam da fumaça oriunda do pólo industria e da noite mal dormida. Ao passar pela ponte pênsil deparou com dois homens barbudos e maltrapilhos que pescavam pacientemente; um deles vez em quando puxava papo com uma sereia popozuda que marcava bobeira na margem do rio. De repente todos se voltaram para a pista a fim de ver a passagem do comboio de zumbis escoltado por cerca de vinte policiais armados de escopetas. Andou cerca de quatrocentos metros até chegar ao hospital geral, em frente ao qual estendia-se uma fila com cerca de duzentas mulheres azuis de sangue prata que aguardavam sua vez de tomar a pílula do dia seguinte. Blade flertou com uma delas enquanto se dirigia ao terminal de caixas eletrônicos. As mulheres azuis tinham fama de ser grandes amantes, o que até então Blade não havia podido comprovar. Sua única parceira sexual era Elaine, que desde que abandonara o negócio de crepes suíços não voltara a dar notícias. Os dois haviam se conhecido num rodízio onde eram servidos variados tipos de carne de seres mitológicos: de faunos a dragões. A picanha de duende era uma verdadeira iguaria; o mesmo podia ser dito acerca das costeletas de saci. Além de crepes, Elaine fazia poesia. Blade era seu único leitor. Ao sacar trinta e seis reais no caixa, lembrou-se de uns versos da amada: À noite a noite abarca / meus pensamentos / E os remete ao limiar da loucura / Há um estremecimento / em face da triste urdidura. Estava triste porque achava que Elaine havia retornado à cidade natal, o que significava que dificilmente voltariam a se ver. Vai demorar?! – exclamou ruidosamente um ciclope espadaúdo que esperava a vez de usar o caixa. Já terminei, disse Blade, após ter sido violentamente sacado do seu mundo de abstrações. E saiu do terminal em disparada, rumo ao topo da torre, onde o Grande Recrutador regia férrea e sadicamente o teatro de bonecos que se dava cá embaixo, em terra firme. Quem passasse pelo corredor de mendigos corria o sério risco de ter um naco de sua carne arrancado às dentadas. Logo à entrada do mercado municipal, cuja fachada servia de abrigo para as lactantes andaluzas que amamentavam seus filhotes, anjos e demônios, protegidos por seus respectivos mascotes - lobos, tigres, falcões, rinocerontes. Blade sentiu pena dos lobisomens magros que bebiam a água turva que escorria nas sarjetas. As mulheres barbadas exibiam seus corpos roliços em vitrines esverdeadas. Cerca de quinhentos metros de um calçadão onde se comerciavam todo tipo de mercadoria imaginável. Granadas, especiarias, tubarões-baleia. Blade almoçou mariscos e bebeu meio litro de refresco de tamarindo. Restaram-lhe vinte e três reais. Quando passava distraidamente por uma galeria, foi puxado pela gola da jaqueta para dentro duma câmara escura. Os primeiros relâmpagos iluminaram o ambiente, e ele pôde ver os homens e mulheres perfilados em poltronas vermelhas e aveludadas, prestando atenção ao filme exibido na tela grande. Um rosário audiovisual de miséria, dúvidas e conquistas. E Blade podia jurar que, entre as mulheres encapuzadas que praguejavam contra a tribo inimiga em meio às ruínas e aos cadáveres de seus filhos e maridos, estava Elaine. Todos na sala riam, choravam, soluçavam, grunhiam. E ele se lembrou de um filme em que um delinqüente juvenil era obrigado a assistir a sucessivas imagens de violência. Mas, ao contrário do rapaz do filme, ele podia fechar os olhos, sair imediatamente do local e se concentrar de novo no que era realmente importante: o encontro mortal com o Grande Recrutador. Não foi difícil atravessar a praça central apinhada de bombos, consumidores, pesquisadores, ambulantes. O imbróglio de nuvens lilases já expelia jorros intermitentes de água púrpura, além das descargas elétricas que fritavam indistintamente camundongos e chimpanzés. O que restara do dinheiro foi gasto com o suborno ao leão-de-chácara que vigiava a torre. Surpreendentemente fácil chegar à sala em que o Grande Recrutador jazia, expectante, debruçado sobre sua enorme mesa de tampo de mármore. E o Grande Recrutador, sangüíneo, corpulento, eminente dono do mundo, levantou a cabeça pesada e olhou na direção de Blade Runner:

- Eu ansiava pela sua chegada.

Blade enfiou a mão direita por baixo da jaqueta e percorreu os escaninhos do colete à procura da arma perfeita.

- Venha. Não oferecerei resistência. Cumprirei minha sina à risca, disse o Grande Recrutador, após abrir a camisa cinza de linho e expor o peito nu ao sacrifício.

Tendo encontrado a faca ordinária de cozinha com a qual pretendia abater o Grande Recrutador, Blade caminhou na direção do alvo, e, desviando por um instante o olhar do rosto afogueado de sua vítima, viu as almas que despencavam do céu junto com a chuva púrpura que se adensava.

- Ande, carniceiro! Sua sede de vingança é mais um sintoma da sua mediocridade moral. Ela crava seu nome no rol dos que nasceram apenas para engordar as estatísticas oficiais – e abriu um sorriso obsceno e revelador.

Como quem descasca uma laranja pela primeira vez, Blade deu cabo do Grande Recrutador. Em seguida abandonou a faquinha sobre a mesa, deu as costas para o corpo largado na cadeira giratória, e seguiu em direção da escada. Quando colocou o pé direito no primeiro degrau, deu-se o que ocorreria, por exemplo, se alguém tivesse, displicentemente, retirado o fio do universo da tomada.
Janeiro de 2009

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