sábado, 24 de outubro de 2009

Diário de um chimpanzé

(I)

Mal a arquitetura do dia se forma, ele pensa em ir embora. Há pouco os cães ladravam e os pássaros chilreavam por atenção, sem sucesso. O mundo não está para eles nem para nós. E ele sentia um certo ódio à insistência do dia em nascer: queria amordaçar os cães e os pássaros que clamavam por atenção. Todos eles. Queria deter o sol, toldar a abóbada celeste. Mas o mesmo espetáculo que o atormentava o convidava a um passeio pelo que a vida pode oferecer de melhor àqueles a quem é dado vestir-se com o manto da existência. Os olhos queimando de curiosidade e rancor, o corpo mantido em stand-by no espaço acolchoado entre o sono e a vigília. Fechou o livro, levantou do sofá, se espreguiçou e caminhou na direção do quarto.

Ao abrir a porta, sentiu um forte cheiro de mofo e desodorante for man. O irmão dormia na parte de cima do beliche, e a avó - com quem há anos eles dividiam o mesmo cômodo - dormia em posição fetal numa cama estreita pegada à janela. Ele caminha lentamente na penumbra a fim de não acordar ninguém; curva o corpo para deitar-se, estica-se bem, sente aos poucos o colchão moldar-se ao desenho do corpo, e procura em vão aquela sensação de relaxamento que sempre vem na esteira do sono.

Não encontrando posição confortável na cama, o corpo produz constantes sensações de contrariedade. Ele e o corpo (porque nunca pensou seu próprio corpo como um aliado) falham na tentativa de penetrar a esfera aconchegante e segura em que a avó e o irmão parecem repousar suavemente. Então decidem, após firmarem um acordo provisório de não-agressão, partir para uma outra empreitada, bem mesmo reconfortante que o sono porém muito mais auspiciosa. Salta da cama e corre a juntar-se aos cães e aos pássaros no coro algo desesperado por atenção - e redenção.


(II)

As abluções matinais contra as secreções produzidas pelo corpo à sua completa revelia. Depois três bolachas de água-e-sal e uma xícara de café como desjejum. Veste sua melhor camisa - herdada do avô materno -, sua calça jeans menos desbotada, seus sapatos pretos mal engraxados, e sai para a entrevista de emprego. Mais uma. Pega o ônibus semilotado; a cobradora negra de cinqüenta e poucos anos o cumprimenta com um sorriso complacente, que se analisado com frieza e distanciamento, revela-se simplesmente automático - o que é bom. Senta-se num banco ao fundo; divide-o com uma moça de uniforme verde-água, de uma rede de farmácias local. Ela tem os cabelos escovados, sua pele recende a sabonete de erva-doce. Ele tenta ensaiar mentalmente o que dirá ao recrutador, como causar boa impressão. Por que merece o emprego? O que o torna digno de confiança? Pensa nas contas que se acumulam sobre a escrivaninha. Pensa na barba hirsuta e grisalha que cresce no rosto do pai; no seu discurso inflamado contra tudo e todos, cujo contraponto principal era encontrado na inocência destemida do irmão caçula. Até quando ele não sabe. Caminha no centro da cidade como um fugitivo da polícia. Vive como um fugitivo. E é absurda mas inevitável a comparação com um criminoso refugiado sob a chancela do governo. Chega ao local da entrevista, uma grande loja de departamentos, confiante, esperançoso, ridículo. A avó vive dizendo que para quem está se afogando jacaré é tronco. O irmão do meio acha graça. Ele também tenta rir de tudo. Mesmo constrangido, ri de suas tentativas de fugir às perguntas de conhecidos sobre sua vida profissional. Da sua idéia boba e estapafúrdia de manter um blog na internet. Dos livros que tem vendido – a contragosto, na maioria das vezes – pela internet. De sua deplorável dependência da internet; da própria citação indiscriminada da palavra internet. Mas então pensa numa verdade alentadora: ele não precisa da internet; mas precisa dos livros. Precisa ler – porque é um animal que lê, acima de tudo. E pouco pode fazer para mudar isso, como em relação às secreções e excreções produzidas diuturnamente pelo corpo. Chega à recepção e diz a que veio para a moça que lixa as unhas pontudas. Ela o anuncia para o recrutador, que pede para que ele aguarde um instante, que em breve será atendido. Enquanto isso, um gato ronrona dentro do seu estômago, e um chimpanzé doido dá corda no seu coração, que passa a bater de modo desenfreado.


(III)

Bem ou mal, ele está no jogo. I’m in, reporta o agente secreto ao chefe da missão. O chimpanzé doido continua a dar corda no músculo cardíaco precocemente debilitado. Periga rebentarem-se as frágeis estruturas do órgão. Ele se levanta do banco onde tentara relaxar debalde. A recepcionista morena (sim, ela é morena e bonitinha) segue lixando as unhas pontudas e pintadas de roxo. Com licença. Não; ele não diz isso porque não estamos num filme americano dublado. Diz: obrigado. E se encaminha à sala estanque do dono dos porcos (a expressão é do pai). À esquerda do corredor que desemboca no escritório do chefe, um grupo de funcionárias do setor administrativo grasna sem parar. Quase não é possível ouvir o que dizem aos berros porque, além das vozes agudas se anularem umas às outras, o tapume que separa o departamento do corredor produz um certo isolamento acústico. Ele sente uma vontade quase irrefreável de permanecer parado no meio do corredor, tentando captar e entender o que aquelas mulheres conversam. Mas faz um esforço para não dispersar sua atenção, que deve estar totalmente voltada para a entrevista que terá lugar dentro de instantes. Respira fundo, ajeita a camisa dentro da calça, tateia os cabelos ralos. Bate três vezes na porta. Entre, por favor, responde a voz do outro lado. E agora sim ele diz com licença, como num filme americano dublado. Postado atrás de uma mesa simples de madeira escura, o entrevistador, um senhor na casa dos 70, de aparência saudável, bem vestido, e com duas discretas bolsas de gordura sob os olhos castanhos denotando abatimento, aponta a cadeira para que o candidato se acomode. Apertam-se as mãos. Uma vez sentados, encaram-se taciturnos e assim permanecem por alguns segundos, como num jogo infantil em que dois adversários medem forças para ver quem consegue sustentar o olhar por mais tempo. A mesa está abarrotada de blocos de notas, faturas, calendários, porta-retratos, porta-lápis, celulares e calculadoras. Um relógio retangular com o logotipo da loja e um pôster do Palmeiras guarnecem a parede atrás da mesa. À direita, há uma estante repleta de arquivos, e à esquerda um frigobar e um sofá bege de dois lugares, rente à varanda cuja vista não chega a ser exatamente enaltecedora.

- Gostei muito do seu currículo. Não entendo por que você não conseguiu uma colocação até hoje. Você está com quantos anos mesmo? – e põe-se a examinar a folha bem diante dos olhos.- Vinte e quantro!?

- Isso.

- E sua única experiência foi como estagiário!?

Ele responde que sim e passa a fornecer detalhes sobre o estágio. Apesar do indisfarçável ar de enfado, o dono dos porcos quer saber mais a seu respeito. Pergunta se mora com os pais, no que eles trabalham, quantos irmãos tem.

- Em que setor você gostaria de trabalhar?

Perguntinha cavilosa. À qual ele responde não sem titubear.

- No setor que for mais conveniente... E sabendo que precisa ser mais específico: Com sinceridade, eu não me vejo trabalhando na linha de frente; os bastidores me caem melhor. Mas não fujo aos desafios. Estou pronto a assumir com responsabilidade e dedicação a função que o senhor me confiar.

Não deu pra aferir o efeito que sua retórica abobalhada causou no entrevistador, pois a campainha do telefone soou em seguida. Ele aproveitou os dois ou três minutos que o homem ficou ao telefone para pensar no que poderia dizer para salvar a entrevista. Não lhe ocorreu nada. Dissera o que achara fundamental: tinha conhecimento disso e daquilo, disposição para contribuir e aprender; o pai estava desempregado, as contas se acumulavam, o irmão pequeno...

- Muito bem. Como eu já disse, gostei do seu currículo. Agora, no começo do ano, há sempre remanejamentos, reestruturações etc. etc. Eu vou conversar com a chefe do RH para ver se consigo encaixá-lo à equipe, provavelmente no setor administrativo. O.k.?

- O.k.

Levantam-se e trocam outro aperto de mão.

- Em breve entraremos em contato para darmos um parecer definitivo. Foi um prazer conhecê-lo, garoto – diz o dono dos porcos.

- O prazer foi meu. Obrigado pela sua atenção. Tenha um bom dia.

Ele deixa a sala amargando a derrota que lhe pareceu tão palpável quanto qualquer um dos inúmeros objetos que atulhavam a mesa de madeira escura do entrevistador. A equipe de mulheres do setor administrativo continuava a grasnar. Ao passar pela recepção, agradeceu novamente a mocinha das unhas roxas e ato contínuo ganhou a rua.


(IV)

As inflexões de tristeza nos rostos dos velhos que disfarçam sua solidão nos bancos da praça parecem prenunciar a hecatombe. E os pombos, esses roedores alados, são os arautos do Apocalipse. O calor abafado desse dia de céu cinzento dá a exata medida do desespero latente sob as almas dos que têm pilhas de contas a pagar e diversos problemas amorosos /sexuais a resolver. Cada criança que passa por ele de mão dada com a mãe revitaliza num átimo sua esperança de um futuro melhor (?). Mas as mulheres palradoras e excessivamente atraentes que se insinuam para a vida com o mesmo despudor com que subjugam os amantes quando do amor provocam em seu âmago um frisson adolescente que o devolve imediatamente à condição de misantropo. Apaga-se a sensação de que ele é, de uma certa maneira, mais consciente do que se passa no mundo do que o ordinário. Ao passar diante duma loja de eletroeletrônicos, vê sua imagem refletida num aparelho de tevê retangular de cinqüenta e quatro polegadas e apressa-se em desfazer esse sentimento de horror. Em redor do chafariz onde brincam crianças serelepes sob o olhar vigilante das mães, percebe uma concentração de quatro ou cinco pesquisadores uniformizados de uma escola de informática. Tenta escapar mas é tarde: uma garota morena e baixota o interpela e pergunta se gostaria de fazer um cadastro para concorrer a uma bolsa de estudos de cinqüenta por cento. Normalmente teria respondido não, mas aquele não era um dia comum. Sorriu debilmente e informou seu nome e telefone à garota. Ela não pôde conter sua felicidade. Em média quantas pessoas conseguia conquistar por dia?

- Idade?

- Oitenta e dois.

- Estado civil?

- Escravizado por uma sílfide castradora.

- Filhos?

- Três ogros, dois zumbis e uma sereia.

- Profissão?

- Prestidigitador.

Por fim, ganha um cupom para depositar numa urna de prata fincada no topo da colina mais alta e distante. Há uma urna de prata hermeticamente fechada na ante-sala do seu peito. Pergunta se ela não quer depositar um cupom nela, mas a garota declina. Covarde! Babaca! Decepcionado, ele lhe dá as costas e segue para a disneylândia mais próxima. Encontra o gado de sempre pastando por entre as estantes das Lojas Americanas. O ar condicionado refresca seus espíritos. Perde seu tempo procurando uma filme genial e barato na seção de DVDs. Uma vendedora pára a seu lado e pergunta as horas: quinze para as onze, responde. Que saco! A hora não está passando hoje. Ele entende sua indignação. Quem é que está refreando os ponteiros do relógio? Quem se mete a deter o tempo universal? Então lhe vêm à cabeça imagens de um documentário sobre o Universo a que assistira na madrugada passada na companhia do irmão do meio. O Big Bang e a formação das galáxias... O surgimento da vida na Terra ao acaso. As forças e os elementos da natureza descobertos por gênios como Einstein (ele se lembra só de Einstein, mas, justiça seja feita, há outros cientistas tão importantes quanto ele que contribuíram para a aquisição do conhecimento que hoje dispomos sobre o nosso planeta e o Universo). Os buracos negros. E sobretudo o desconhecido: a tal matéria escura presente na quase totalidade do Universo e sobre a qual os cientistas não sabem praticamente nada. Nada. Esse tipo de documentário sempre o deprimiu porque dá a medida justa da sua insignificância. Nem o fato de saber que seu corpo é feito da mesma matéria que compõe as estrelas o conforta. Programas jornalísticos sobre o Aquecimento Global e assuntos correlatos também o deprimem. Como é frágil e patético! Outra vendedora magra e de olhos verdes (que olhos!) o aborda e o informa da promoção da semana: alugue três DVDs (na Blockbuster que funciona dentro da loja) e ganhe duas pipocas de microondas. Mas eu não tenho microondas, meu amor (não disse meu amor, claro). Em todo caso só tinha dinheiro para a passagem de ônibus. Saiu da loja e caminhou a esmo, até ir parar na Biblioteca Municipal, onde poderia ler e disfarçar sua solidão gratuitamente.


(V)

Andando pelo calçadão do Mercado Municipal, ele chuta o restolho de hortaliças e desvia dos cães vadios e dos pedintes que atravancam o caminho. Sente uma leve dor no flanco esquerdo, um aviso de que em breve uma hérnia eclodirá bem ali, à altura do rim, como a do pai eclodiu. O joelho esquerdo também está dolorido, mas ele sabe que isso nada tem que ver com previsões meteorológicas de qualquer espécie. Costume de velhos. Caminha até a banca de jornal e espia as manchetes. Desemprego. Futebol. Crise econômica. Carnaval. Violência. Corrupção. Mais carnaval e futebol. Pousa inopinadamente o olhar sobre a fileira de revistas pornográficas: a moda agora são as mulheres-fruta. Mulher com mulher já virou clichê, mas homem com homem - pelo menos em banca de jornal – é um fenômeno recente. E ninguém parece se importar. Acha bom que seja assim. Todo cidadão tem direito a escolher a sacanagem que melhor lhe aprouver. Um carro-de-som passa gritando ofertas de cama, mesa e banho no seu ouvido. Outro carro anuncia a chegada de um circo de nome esquisito na cidade. Ele ainda vai descobrir o que tanto esses circos de nome estrangeiro vêm fazer na sua cidade, um desconhecido fim de mundo. Ganhar dinheiro? Mas como, se mais ninguém parece se interessar por espetáculos circenses hoje dia?Carrega um buraco negro no peito. Está muito suscetível a enfermidades. Resolve entrar no Mercadão. Vai até uma peixaria e pergunta o preço do quilo de cação. Gosta de sentir o cheiro das mercadorias. Gosta de ver essa gente que se dedica a um ofício tão antigo e essencial. Quando está imerso em uma crise existencial profunda, dirigi-se ao Mercado Municipal em busca de conforto. Ali sente-se humano, substantivo, telúrico. Chega-se até a barraquinha onde um octogenário de cabelos acinzentados e unhas grossas e sujas vende livros, revistas e jornais velhos. Uma vez comprou ali um livro por cinco reais e o vendeu por oitenta, na internet. Desnecessário dizer que se arrependeu.

Sai do mercado quando sente um inexpugnável desejo de deitar-se naquele chão centenário e chorar que nem criança.

Um funcionário lava o saguão da biblioteca. Ambos trocam um olhar impessoal, quase hostil. Já “brigaram” pela posse do jornal várias vezes. Quando um dia o tênue fio da civilização se romper, sairão no braço. O tênue fio da civilização! Ensaio sobre a cegueira, filme de Fernando Meireles baseado no romance homônimo de José Saramago, versa basicamente sobre isso. Uma epidemia de cegueira assola a humanidade, que pouco a pouco transgride as leis de convivência mais básicas. A barbárie recrudesce. E só não triunfa completamente porque Juliane Moore guia-nos até a luz.

Tivera rusgas com outros leitores por causa de jornal e espaço para ler. Apesar de sempre procurar ser educado e justo, conseguiu ganhar a antipatia de alguns “velhos loucos.” Havia um que portava um cajado e um saco de estopa, e sempre chegava ao local fazendo estardalhaço. Seus olhos eram azuis e aguados, e apenas dois dentes amarelados figuravam solitários em sua boca murcha. Sentava-se a uma mesa de modo a atrair a atenção toda para si, e sacava do saco de estopa uma lupa com a qual lia o noticiário político dos dois jornais assinados pela biblioteca. Era um entusiasta de Barack Obama. De cada dez palavras que dizia, podia-se compreender uma.

(VI)

Nos últimos dias ele tem alternado sentimentos de resignação e esperança. Quase nunca é agredido pela falta de sentido que sempre o acompanhou. Ainda não é a sensação de conforto absoluto que um dia pretende trazer consigo, a sensação de que viver é natural, e que portanto deve encarar seu destino humano como um chimpanzé ou um lagarto encaram o seu. Depois que experimentou o pânico, nunca mais conseguiu viver com total naturalidade; o tempo todo tem de se esforçar para convencer a si próprio de que estar vivo é natural e devemos tocar nossas vidas de acordo com o que nos constitui.

Tem saído para procurar emprego como de hábito. Na maioria das vezes fica sabendo de oportunidades por meio de amigos e conhecidos. Às vezes consegue uma ou outra entrevista; às vezes essas entrevistas se desdobram em segundas entrevistas ou em testes diversos, os quais ele encara estoicamente, sempre cuidando para transmitir uma impressão melhor do que sua aparência e seu semblante melancólico acusam. Quer impressionar sem cair no ridículo, mas quase nunca consegue. Diz pequenas mentiras e acredita que nunca vai ser desmascarado em razão da inocuidade desse ato. Mais do que mentiras, ele comete omissões. É um sonegador. Se fosse bom nisso, até que sentiria algum orgulho, mas passa muito longe da competência nesse quesito.

Gosta de acordar cedo – talvez pela ausência de obrigatoriedade. Se tivesse de se levantar cedo todos os dias, talvez passasse a não gostar. Gosta de tomar café na rua, e o faria sempre se dispusesse de recursos para tanto. Quando não sai à procura de emprego, vai à biblioteca municipal da cidade vizinha, Lorena. Descobriu o lugar por acaso, numa incursão à cidade, durante a qual deixou alguns currículos na agência de empregos do estado local e, na viagem de ônibus, conheceu uma delegada de polícia de meia-idade que lhe desejou boa-sorte. A biblioteca municipal de Lorena possui um acervo variado que lhe apetece. Além do mais, dispõe de assinaturas de jornais e revistas que ele gosta de ler com alguma periodicidade. Os funcionários o tratam com bonomia; permitem que ele empreste três livros por vez, e nunca o punem – sequer o repreendem – quando devolve os livros fora do prazo. A única ressalva que faz à biblioteca diz respeito à limpeza do local. Os banheiros são imundos. Não dispõem de papel higiênico nem de sabão para a higiene das mãos. A bem da verdade, a culpa pela imundície dos banheiros é dos usuários da biblioteca, que decerto reproduzem no ambiente coletivo o que fazem em casa. Caso essa suposição esteja correta, os azulejos do banheiro dessa gente devem estar sarapintados de bosta humana.

Cães vadios circulam livremente pelo prédio. Duas devotas de são Francisco de Assis - a mulher de cabelos tingidos de ruivo que trabalha no guarda-volumes, e a magrinha de olhos fundos que cuida do acervo restrito ao público – dão liberdade para que os cachorros se sintam à vontade no local, podendo se abrigar debaixo de qualquer mesa ou cadeira sem ser incomodados por ninguém, como se fossem vacas ou macacos sagrados indianos. E ele teme pelo dia em que atolará o pé num amontoado de merda canina ao adentrar o prédio, ao caminhar por entre as estantes de livros disponíveis para empréstimo, ou ao se dirigir ao cantinho debaixo da rampa de acesso à sala de informática para cadeirantes, onde jaz o bebedouro enferrujado.

Desfila suas dúvidas e sua insegurança pelos corredores das estantes. Abre livros empoeirados, lê alguns parágrafos, sente a aspereza do papel velho ao folhear. Agacha-se a fim de apanhar um volume na prateleira mais baixa. Permanece alguns minutos assim, de cócoras, namorando o romance, o volume de memórias, de conto, de poesia... Enrubesce quando se descobre observado: ainda é imaturo demais para ignorar o julgamento alheio. Quando se põe de pé novamente, sente uma dor aguda no joelho esquerdo, doente desde a manhã em que caiu no meio de uma partida de futebol na quadra da escola e nunca mais se levantou. Continua lá, estirado na intermediária, sob os olhares preocupados e zombeteiros dos colegas; sob o sol forte de uma bela manhã de verão.

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