Em março do ano passado, postei alguns trechos do meu romance inédito no blog. Como algumas pessoas ainda têm interesse pelo livro, resolvi compilar esses posts e disponibilizá-los para consulta aqui. Enjoy!
Resolvi publicar aqui alguns trechos do meu romance inédito, Paroxetina, que, como vocês já sabem, foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura 2008 e recebeu menção honrosa da comissão julgadora.
A seguir, um trechinho da segunda parte do livro, intitulada Um mar de cafeína:
Foi o próprio dr. Moraes quem o indicou. Numa conversa particular com minha mãe, o médico veterano falou a respeito desse jovem psiquiatra da cidade de Lorena, que, segundo ele, poderia tratar do meu caso. Isabel disse que me acompanharia ao consultório do tal médico, e eu não tive como recusar. Também estava cansado de viver com medo do próximo passo que daria. O ambiente ao meu redor podia, de uma hora pra outra, transformar-se numa esfera inóspita e ameaçadora sem que eu tivesse discernimento o suficiente para provar a mim mesmo que as sensações de pavor e de iminência da destruição não passavam de invenção da minha própria cabeça. Ou, colocando de um outro modo: o mundo à minha volta continuava o mesmo; era o meu corpo que criava a sensação de perda de controle, de perigo de morte. Tudo estava relacionado a um distúrbio orgânico que gerava crises de falta de ar, taquicardia, sudorese, medo do desconhecido. E, embora eu houvesse lido bastante a respeito da síndrome do pânico em jornais, revistas e sites na internet, quando uma crise eclodia, esse parco conhecimento adquirido não era suficiente para fazer com que eu a suprimisse. Então acabava por amargar mais uma “crise de nervos”, por assim dizer, e sempre saía dela como se tivesse acabado de disputar uma luta frenética com um pugilista cem vezes mais forte do que eu.
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II
Enquanto toda a mídia se refestela com o lançamento do novo romance de Chico Buarque, eu publico mais um trecho do meu desconhecido Paroxetina. A disputa é desigual, mas pode ser que, por um milagre ou por uma (improvável) comoção popular, meu livrinho suscite o interesse de alguma casa editorial, ganhe as livrarias do país em breve e se torne campeão de vendas – deixando Chico, o grande compositor e escritor de talento, chorando o leite derramado. Ha! (Sonhar não custa nada).
Segue um trecho da primeira parte do livro, A vida em edição comentada:
Trovejava. Vó Odila me orientava a não tomar banho imediatamente após as refeições. Uma vez ela e tia Verônica quase puseram a porta do banheiro abaixo para me impedir de cometer suicídio. Assim cresci amedrontado. Os pesadelos em que eu era esmagado por forças invisíveis persistiam. Somou-se a isso o horror a um filme sobre a vida de um rapaz que tinha o rosto deformado por uma deficiência congênita. Toda vez que esse filme passava na tevê eu ia pra bem longe do aparelho. Não sei exatamente por que eu temia tanto assim o filme. E anos mais tarde, quando o pânico começaria a me atormentar a existência, eu também teria imensa dificuldade em me encarar no espelho. Era como se visse refletida a mesma deformidade do rapazinho do filme. Um aleijão que se formara à minha revelia. Uma porcaria. Um nojo.
A televisão tinha uma grande parcela de culpa nisso tudo. Os programas vespertinos mostravam criaturas bizarras, mutantes, solitárias. Tinha de tudo: falcatrua, beatitude, adultério, perfídia sexual. Certa vez entrevistaram um menino-peixe que vivia num aquário. Assisti à entrevista consternado por um misto de incredulidade e comiseração. Eu não podia assimilar certas coisas, e não havia como ignorá-las. Isso me privou de muitas noites de sono: o eterno remoer de indignações. Teria sido mais fácil aprender a dançar, tocar piano ou guitarra, confeccionar balões, fabricar gaiolas – vô Aranha ministrava oficinas. Mas nessa noite pedi à vó Odila que me deixasse dormir a seu lado, encolhido entre ela e meu avô na cama de casal. Tudo menos a culpa. Os pais – e os avós, por conseguinte – preferiam pecar por excesso. Cediam. Às vezes apelavam a seu Cristóvão, que mal conseguia ler e entoar seus cantos litúrgicos de tão velho. Ele me confundia com outras crianças. Chamava-me de Pedrinho, Robinson Crusoe, Peter Pan... Dizia que eu seria muito feliz, e que daria muita felicidade à família. Eu acreditava e comia os bolinhos de arroz e a paçoca que dona Mariúcha preparava - tudo bento. Enquanto isso, Amanda, minha vizinha, me ensinava a ser um homenzinho: põe a mãozinha aqui, bem. Isso, devagar. Agora beijo de língua. E quase me afogo da primeira vez. Mulher gosta de homem que aperta, fala grosso, morde. Para uma garota de apenas treze anos, Amanda até que sabia das coisas. A ela mostrei meu primeiro pentelhinho. Não consigo ficar feliz por isso, amor. Em breve você se tornará um escravo. Sofrerá de um mal indefinido e emanado de mulheres sádicas sobre cujos corpos você pairará como uma abelha faminta diante da flor. Fiquei sem entender. Dia seguinte, trepado no telhado da edícula, Isaías, o irmão mais velho de Amanda, me oferece um cigarro. Um tanto de alcatrão e outro de nicotina aceleraria o processo de crescimento dos meus pêlos pubianos, ele me garantiu. Fumei. Me engasguei. E quase me finei na tosse. Isaías, meu verdugo, ria à grande. Meses depois um facínora juvenil das redondezas se encarregaria da minha vingança: arrebentaria a cara de Isaías com um pedaço de bambu. Esclareço: não fui o mandante. Tratava-se de rixa antiga – Isaías tinha seus desafetos. E confesso que, quando contemplei seu corpo estirado no sofá da sala, a cara túmida e ensangüentada que lhe conferia uma feição monstruosa, senti pena a ele. Dois dentes pontudos e lacerados que sua mãe colocou diante dos meus olhos: só um animal pra fazer isso com uma criança, dizia ela, chorosa. Semanas depois Isaías voltava pra detrás do balcão do botequim do pai, o qual era regularmente freqüentado por Bernardo. E não era um boteco qualquer; era dos mais odiosos e anti-higiênicos, do tipo que serve salsichas mofadas e torresmos adiposos como tira-gosto. Aos sábados havia suã e torneio de truco. Um sósia do Roberto Carlos se apresentava num palco mambembe feito de paletes de madeira empilhados. O cantor colhia flores e aplausos. Vestia um terno branco e depauperado, que aos poucos ia se impregnando de manchas de álcool e gordura; aqui e ali também maculado por guimbas de cigarro. Vez em quando alguém propunha um duelo. Você vai cantar o quê? Garrincha, o dono da birosca, tentava impor alguma ordem aos trabalhos, enquanto eu, premido entre uma pilha de engradados e a mesa de sinuca, pensava se já não era hora de convencer meu pai a voltar pra casa. A qualquer momento Isabel podia surgir inadvertidamente e me resgatar daquela fedentina atroz. Contendas figadais adviriam disso. Bernardo dava um trago no hi-fi, eu já o via claudicando pela calçada até chegar ao portão de casa. Os gritos, as ofensas que ele e Isabel trocariam já reverberavam na minha cabeça. Via Dick recolher-se célere à caixa de papelão que lhe servia de abrigo; meu irmão encolhido num canto da cozinha, as mãos espalmadas contraindo os ouvidos. Meus nervos enregelados e destrinchados a alicate. As mãos de Bernardo arrancavam cabelos; um punho cerrado (o meu?) descia-lhe contra a face num golpe duro; alguns fantasmas incendiados crepitavam estrepitosamente, num vaivém de insânia etílica: eu o débil mental? Nessa hora brotava minha impotência: um broxa que não chegou a foder.
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III
Há no livro várias descrições de crises de pânico vividas pelo protagonista, Marcel. A que escolhi para postar aqui está no final do romance, e, se não é a de que mais gosto, é uma de que me recordo bem do momento em que foi gestada, por assim dizer. Ter lembrado de quando essa passagem foi escrita me fez querer compartilhá-la com vocês.
De repente, é como se eu me encontrasse num campo minado; todos os caminhos tornam-se inseguros. Para onde quer que eu olhe, vejo objetos que se distanciam, enquanto de mim se apodera uma espécie de desespero. Então o ar começa a se rarefazer e, em conseqüência disso, minhas pernas já não me obedecem mais. Meu coração se acelera, põe-se a galope; dá início a um processo de agonia imediato; nesse instante sei que vou morrer. Mas, mesmo meu corpo estando tomado por uma desordem vertiginosa, luto para não sucumbir - sei que apesar de todo sofrimento e de toda força antagônica, preciso me manter de pé, raciocinando, sentindo o sol queimar a minha pele, a terra sob os meus pés, o vento, o vento... A poesia então é intrusa, mas também é alento. De que me servem agora os choros contidos? A visão do paraíso continua lá, em algum lugar, intacta, embora não inalterada. Fico feliz porque uma formiga se intromete num dos meus sapatos. Arfo, e permaneço parado. Pessoas andam de um lado a outro – meus estranhos, meus iguais. O motor dos automóveis fere-me a auto-estima, a fumaça dos automóveis... Faltam poucos metros pr’eu chegar ao prédio da faculdade, não posso desistir agora. Retomo o controle da minha respiração e começo a caminhar lentamente. O horror vai dando lugar a uma sensação de alívio. Atravesso a rua...
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Encerrando, ao menos por ora, a publicação de fragmentos do romance Paroxetina neste burgo, segue um breve relato das conseqüências da brusca interrupção do tratamento com antidepressivos na vida do personagem-narrador, Marcel dos Santos Reis:
IV
O tratamento lastreado em antidepressivos não podia ser interrompido subitamente. Caso isso ocorresse, haveria efeitos colaterais decorrentes da abrupta suspensão do uso do medicamento. Tontura, sudorese, dor de cabeça, desconforto gastrintestinal, terrores noturnos. Essas eram algumas conseqüências da interrupção repentina do tratamento. O organismo, habituado à ação da substância sobre o corpo, reagia à falta dela com uma espécie de tempestade. E isso, como bem enfatizou o dr. Augustus, não queria dizer que a paroxetina gerava dependência, e sim que o abandono do tratamento tinha de ser gradual. Os mal-estares cessariam dentro de poucos dias.
Provei dessas reações todas as vezes que ensaiei abandonar o tratamento. Após três dias sem tomar os comprimidos, começava a me sentir estranho. Meu corpo ficava à mercê de sensações adversas - qual zonzeiras, formigamentos, pulsação dentro da cabeça, cólicas gastrointestinais. Resumindo: eu me sentia podre. Esse era o preço que eu pagava por minha rebeldia suicida. Estava cansado daquelas consultas inúteis com o dr. Augustus. Nossos encontros tornavam-se cada vez mais banais. Comentávamos os assuntos do noticiário nacional, falávamos do tempo, do meu desempenho na faculdade, das malditas sessões de psicoterapia – pelas quais eu ainda não podia pagar. E eu nunca dizia o que realmente precisava dizer. Que o meu coração dava coices dentro do peito, os quais me lançavam violentamente para frente e me causavam uma sensação de dormência que surgia no estômago e morria na boca. Era o que eu queria dizer. Mas não tinha coragem de usar palavras tão chulas como coice e tranco diante do doutor, dentro daquela sala limpa e refrigerada.
Nós nos suportávamos. Eu precisava das receitas para comprar o medicamento. As atendentes da farmácia de manipulação continuavam a me tratar com bonomia. Às vezes eu chegava zonzo, cambaleante, sem fôlego à farmácia, e elas edulcoravam tudo com um sorriso amistoso. Meu corpo despencava sobre a cadeira. É pelo convênio, por favor. O suor escorrendo aos borbotões. Tiro um sorriso do fundo da minha alma para a morena que me atende. Mais alguma coisa, senhor?Assino o formulário que ela me entrega. Suas unhas estão pintadas de branco. Quer casar comigo?
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